Grandes empresários do mundo estão se apropriando das riquezas globais e colocando em risco a capacidade do poder público de atuar para garantir direitos básicos, como a educação, saúde e alimentação. Essa é a conclusão do relatório Do Lucro Privado ao Poder Público: Financiando o Desenvolvimento, Não a Oligarquia, divulgado nesta quarta-feira (25) pela Oxfam, organização que monitora a desigualdade mundial.
O documento da Oxfam compila uma série de dados divulgados por diferentes fontes. Da Base de Dados sobre Desigualdade Mundial (WDI, na sigla em inglês), ele retirou números que apontam que, de 1995 a 2023, a riqueza privada cresceu 342 trilhões de dólares. Isso é oito vezes o crescimento de 44 trilhões de dólares da riqueza pública.


Parte disso ocorreu porque o poder público mundial optou por tentar favorecer o capital privado para que ele, indiretamente, viesse a promover o desenvolvimento social oficialmente perseguido pelo Estado. Essa opção é batizada pela pesquisadora Daniela Gabor, da Universidade do Oeste da Inglaterra, de o “Consenso de Wall Street”, em alusão ao centro financeiro de Nova Iorque.
“O ‘Consenso de Wall Street’ é uma nova fase da agenda de desenvolvimento, marcada pela centralidade dos interesses do capital financeiro. Trata-se da reorientação do financiamento do desenvolvimento – antes entendido como uma responsabilidade dos Estados – para um modelo no qual os recursos públicos passam a servir como instrumentos de atração e garantia para o setor privado”, explica Carol Gonçalves, coordenadora de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil. “Esse modelo se materializa por meio de instrumentos como parcerias público-privadas, as PPPs.”
O relatório da Oxfam indica que esse caminho não funciona. Trata-se, na verdade, de uma “fantasia” que só atrasa compromissos assumidos por nações.
A Oxfam lembra que, em 2015, na Terceira Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, realizada em Addis Abeba, Etiópia, as nações acordaram a criação de uma agenda e de linhas de financiamento para que os chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODS) fossem alcançados até 2030. Esses objetivos incluem a erradicação da fome e miséria, a redução da mortalidade infantil, entre outras coisas. Foram lançados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000.
De acordo com uma pesquisa feita em colaboração com a própria ONU e que é citada pelo Oxfam, “apenas 16% das metas dos ODS estão no caminho certo para serem alcançadas globalmente até 2030, com o restantes 84% mostrando progresso limitado ou uma reversão do progresso.”
“O ‘Consenso de Wall Street’ compromete profundamente o avanço dos ODS, pois inverte a lógica da cooperação internacional ao subordinar o financiamento do desenvolvimento aos interesses do capital privado”, ratifica Gonçalves, da Oxfam Brasil. “Os países mais pobres, que mais necessitam de apoio para alcançar os ODS, recebem uma parcela ínfima do financiamento privado por conta da aversão a riscos.”
Ela acrescenta que a lógica do financiamento privado acaba gerando custos elevados ao poder público. Na prática, transfere recursos públicos ao capital privado, o que gera ainda mais desigualdade. “O modelo substitui a solidariedade e a ação pública coordenada pela lógica de mercado, aprofundando desigualdades e comprometendo a sustentabilidade do desenvolvimento no longo prazo”.
Não por acaso, desde 2015, a riqueza dos 1% mais ricos do mundo aumentou mais de 33,9 trilhões de dólares (cerca de R$ 185 trilhões na cotação atual), já descontada a inflação. O dado foi apurado pelo banco suíço UBS e é citado no relatório da Oxfam.
Considerando dados do Banco Mundial, a Oxfam afirma que esse ganho dos super-ricos seria suficiente para pôr fim na pobreza mundial 22 vezes.
A organização também cita em seu relatório uma apuração da Forbes, que indica que a fortuna de apenas 3 mil bilionários cresceu 6,5 trilhões de dólares desde 2015. Hoje, o valor equivale a 14,6% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial – a soma de toda riqueza produzida no mundo em um ano.
Brasil
Na América Latina, a diferença entre o crescimento da riqueza privada e pública é ainda maior do que a média mundial, segundo dados do WDI citados pela Oxfam, . De acordo com Gonçalves, isso tem a ver com o cenário no Brasil.
“O Brasil não está à margem da lógica do ‘Consenso de Wall Street’. Nas últimas décadas, o país adotou instrumentos como parcerias público-privadas (PPPs) e políticas de estímulo ao investimento privado em setores essenciais como saúde, educação, energia e infraestrutura”, lembra a coordenadora local da Oxfam.
Segundo ela, essa agenda se intensificou a partir da aprovação do chamado teto de gastos, em 2016, e foi aprofundada pelo arcabouço fiscal, proposto pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Como consequência, o país tem enfrentado subfinanciamento crônico de serviços públicos e crescente dependência de arranjos com o setor privado, fragilizando o papel do Estado como garantidor de direitos”, diz Gonçalves. “Em paralelo, a concentração de renda no Brasil permanece uma das mais elevadas do mundo.”
Gonçalves, entretanto, também vê avanços. O Brasil propôs no grupo de países mais ricos do mundo, o G20, a taxação de super-ricos. O governo Lula ainda enviou ao Congresso uma reforma no Imposto de Renda para isentar trabalhadores que ganham até R$ 5 mil por mês e tributar mais quem ganha mais de R$ 600 mil por ano.
“O projeto busca corrigir distorções regressivas do sistema atual, reduzir desigualdades e aumentar a contribuição dos mais ricos para o financiamento das políticas públicas. Essa medida é essencial para reequilibrar o sistema tributário brasileiro e recuperar a capacidade do Estado de garantir direitos sociais de forma universal e sustentável”, diz ela.
Soluções
O relatório da Oxfam aponta que a tributação de ricos é uma das soluções para a falta de recursos públicos para o combate aos problemas sociais. Uma pesquisa citada no texto mostra que há apoio popular para isso, e que ele é maior no Brasil.
A organização também defende o apoio direto de nações ricas a países pobres. Segundo o relatório da entidade, o cenário atual indica o contrário. “Os países ricos estão realizando os maiores cortes em ajuda humanitária desde 1960. Os países do G7, responsáveis por 75% da ajuda oficial, reduzirão seus repasses em 28% até 2026”, informa o texto.
A entidade espera que essas soluções sejam discutidas entre 30 de junho a 3 de julho, na quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FFD4), em Sevilha, Espanha, que será promovida pela ONU.
“Sevilha é o primeiro grande encontro global em um momento em que a ajuda humanitária está sendo destruída, uma guerra comercial começou e o multilateralismo está em frangalhos. O desenvolvimento global está falhando porque os interesses de uma minoria super-rica são colocados acima de todos os outros”, disse Amitabh Behar, diretor-executivo da Oxfam Internacional.
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