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Propaganda de guerra e tecnologia de vigilância: por que Israel pagou viagem de prefeitos brasileiros

 

Quando os mísseis iranianos atingiram alvos em Tel Aviv, em Israel, os jornais e televisões brasileiras foram rápidos ao trazer depoimentos e imagens, diretamente de um bunker, de prefeitos brasileiros que estavam lá em uma “viagem de estudos”.

 

O que prefeitos brasileiros, a maioria de direita, faziam em Israel em meio ao genocídio do povo palestino, a poucos quilômetros de distância? A resposta é uma operação de propaganda que combina lobby e venda de tecnologias de vigilância.

A viagem foi integralmente custeada pela Mashav, uma agência israelense de cooperação internacional, em conjunto com o Instituto Internacional de Liderança, uma federação que representa trabalhadores israelenses. 

As bolsas oferecidas incluíram, segundo a própria Mashav, custos do programa, taxa de estudos, visitas técnicas e profissionais, pensão completa e transporte. 

A comitiva incluiu 11 políticos – quase todos de partido de extrema direita ou de direita. Entre eles estavam Álvaro Damião, prefeito de Belo Horizonte pelo União Brasil, Cícero Lucena, prefeito de João Pessoa pelo PP, Jhonny Maycon, do PL, prefeito de Nova Friburgo, Gilson Chagas, secretário de Segurança de Niterói, e as vice-prefeitas de Goiânia, Claudia Lira, e Divinópolis, Janete Aparecida, do Avante.

 
Trechos do documento com o convite do evento, usado pelo prefeito de Nova Friburgo, Jhonny Maycon, para justificar a viagem | Reprodução
 

O grande objetivo da viagem da comitiva de prefeitos e autoridades municipais de diversas cidades brasileiras era visitar a Muni Expo, uma feira organizada pela Federação das Autoridades Locais de Israel. 

“O evento será realizado sob o lema ‘Bússola Local’ e discutirá as direções que Israel tomará nos próximos anos para promover o crescimento compartilhado e a esperança em cada um de nós como cidadãos, como comunidade e como nação”, diz a descrição do evento no documento enviado aos prefeitos. O plano foi frustrado pelos ataques aéreos do Irã a Israel. 

Os prefeitos brasileiros saíram por terra de Israel e chegaram à Jordânia na segunda-feira, 16. A Muni Expo começaria na terça-feira, 17, mas foi postergada em razão da situação de insegurança. 

Uma cópia da programação da viagem à qual o Intercept Brasil teve acesso revela que a feira era só parte de uma programação intensa – e de lobby. Vários dos temas abordados não eram relativos nem à segurança nem à políticas municipais.

Estava previsto, por exemplo, um encontro com familiares e vítimas do atentado de 7 de outubro. De acordo com o planejamento, integrantes também visitariam uma área próxima à Faixa de Gaza, incluindo o local de um festival eletrônico atacado na noite do dia 7. 

Trecho de cronograma do evento enviado pela vice-prefeita de Goiânia, Cláudia Lira | Reprodução
 

“Trauma, resiliência e caminhos para a reabilitação física e humana”, informava trecho da programação que aconteceria no dia 19 de junho. Também estavam previstas visitas aos locais turísticos no final de semana.

Além de políticos locais, o governo israelense também vem levando jornalistas para o país com o objetivo de prevalecer sua versão da guerra. Os repórteres, no entanto, são proibidos de entrar em Gaza. 

Ainda entre os temas abordados nos 10 dias de evento com os políticos brasileiros estava “planejamento urbano”, na perspectiva de criação de novas cidades e novos bairros. 

Segundo o tesoureiro da Confederação Nacional dos Municípios, Francisco Nélio, um dos participantes do encontro seria o presidente da Associação dos Municípios de Israel, Haim Bibas, prefeito de Modi’in-Maccabim‑Re’ut, região que chegou a ser considerada um assentamento ilegal pela União Europeia em 2012. Na época, Bibas já era prefeito da cidade e acusou a UE de criar uma barreira para a paz.

Feira quer que municípios sejam protagonistas na segurança

Na Muni Expo, estariam presentes empresas israelenses como a Tamildata, uma empresa que vende soluções de controle de comunicações em ambientes educacionais que tem como co-fundador, segundo o site da empresa, Yoram Bibish, um veterano do departamento de tecnologias e comunicações do exército de Israel. 

Propaganda sobre tecnologias de vigilância, como biometria, que seriam apresentadas em evento com prefeituras brasileiras | Reprodução
 

Outra expositora seria a Reshef Security, que fornece soluções de segurança para checkpoints israelenses em Jerusalém e na Cisjordânia. “Esta é uma excelente oportunidade para se expor a novos conteúdos inovadores, aprofundar relações e conhecer de perto o que move o setor”, diz um post da empresa divulgando o evento no LinkedIn.

O foco da feira é apresentar soluções de segurança pública na esfera municipal e encorajar que governos locais sejam mais protagonistas nessa pauta – um movimento que já está em curso no Brasil, ainda que a Constituição seja clara ao estabelecer que segurança pública não é prerrogativa dos municípios. 

O que tem ocorrido é uma apropriação do tema da segurança pública por prefeitos, explicou Pablo Nunes, coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, o CESeC, e da Rede de Observatórios da Segurança Pública. Segundo Nunes, isso se manifesta principalmente de duas formas: o aparelhamento e armamento da guarda municipal e as tecnologias de reconhecimento facial. 

Em março deste ano, São Paulo aprovou uma emenda a uma lei municipal que amplia as atribuições da Guarda Civil Metropolitana, que agora passa a chamar-se polícia municipal. Em junho, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou, em caráter definitivo, o armamento para a guarda municipal. 

Em fevereiro, o STF decidiu que guardas municipais podem fazer policiamento urbano. E a cada dia se torna mais comum “grupos especiais” de guardas municipais com armas mais letais, no estilo de batalhões como o Bope. 

Ricardo Silva, prefeito de Ribeirão Preto pelo PSD também presente na comitiva de Israel, foi um dos que aproveitou a decisão do Supremo Tribunal Federal para criar uma polícia metropolitana. Em Goiânia, representada em Israel pela vice-prefeita tenente-coronel Cláudia Lira, a guarda civil metropolitana tem acesso a fuzis. 

Para Nunes, a viagem dos prefeitos a Israel para conhecer tecnologias de vigilância é mais um capítulo numa história que já vem se desenhando há anos.

“A ida de prefeitos para conhecer como Israel usa suas tecnologias para lidar com os palestinos tanto na Cisjordânia quanto na Faixa de Gaza é muito sintomático de um movimento já muito bem conhecido em que políticos brasileiros visitam Israel para conhecer essas tecnologias”. 

Segundo o pesquisador, Israel tem se tornado cada vez mais um exportador de tecnologias, inclusive tecnologias muito questionáveis, que encontram um mercado próspero no Brasil, em especial sob governos de direita e extrema direita

Em 2023, veio à tona a notícia de que a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, havia usado o FirstMile, um software espião que localiza alvos em tempo real, contra milhares de adversários do governo Bolsonaro – e que teria de jornalistas a ministros do STF como alvos. 

Em junho do ano passado, revelamos como uma tecnologia de reconhecimento facial desenvolvida por uma empresa israelense que opera ferramentas de vigilância em Gaza estava sendo propagandeada nas escolas públicas de Alagoas. 

A própria Cognyte, desenvolvedora do FirstMile, celebrou contratos com inúmeros órgãos estaduais, segundo reportagem de outubro de 2023 da Agência Pública.  

A grande vantagem propagandeada pelas empresas israelenses é que são tecnologias já testadas e aperfeiçoadas em “campo de batalha”, explica o jornalista Antony Loewenstein em seu livro “Laboratório Palestina: como Israel exporta tecnologia de ocupação para o mundo”. Esse campo de batalha é Gaza e o alvo é a população palestina. 

Em entrevista ao Intercept em dezembro de 2024, Rula Shadeed, jurista palestina e co-diretora do Instituto Palestino de Diplomacia Pública, o PIPD, disse que Gaza virou um campo de demonstração ao ar livre de tecnologias de guerra de Israel, que podem ser vendidas para outros regimes repressivos após serem testadas em palestinos.

Segundo Shadeed, essas tecnologias também viram moeda de troca para conquistar apoio político. “Assim que as tecnologias avançam o suficiente e continuam se desenvolvendo, eles as usam para manipular alguns países em troca de seu apoio ou para criar aliados e relacionamentos com outros estados”. 

Em março de 2024, os governadores de Goiás e São Paulo, Ronaldo Caiado, do União Brasil, e Tarcísio Freitas, do Republicanos, visitaram Israel a convite do governo. Como parte da programação, se reuniram com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e com o presidente de Israel, Isaac Herzog.

Questionado à época, Tarcísio disse que a viagem não tinha nem “ideologia nem política”. “A gente tem uma parceria com o governo de Israel, parcerias importantes, compra de equipamentos, recebemos um convite. A gente tem uma excelente relação, estamos aceitando um convite e pronto”, disse o governador. 

O governo paulista tem sido um comprador voraz de tecnologias de defesa de Israel. Desde o primeiro ano do mandato de Tarcísio, o governo estadual gastou R$37,3 milhões em contratos com três empresas israelenses, segundo informações obtidas pelo deputado estadual Guilherme Cortez, do Psol, e reveladas em reportagem do Brasil de Fato. O maior gasto – de R$17,4 milhões – foi com a Cellebrite, empresa que produz softwares de espionagem e ferramentas de extração de dados de dispositivos móveis.

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