A Ocupação Rexistência Poa, localizada no prédio da Rua dos Andradas, 1780, no centro de Porto Alegre, completou um ano de existência no final de maio. O espaço, que já havia sido ocupado anteriormente em 2023, ganhou novo significado durante a maior tragédia climática e sócio-ambiental da história recente do Rio Grande do Sul, quando o movimento decidiu reabrir o local como abrigo para famílias desabrigadas pelas enchentes. A celebração aconteceu neste sábado (14) com atividades culturais, oficinas e rodas de conversa.
Segundo a coordenadora estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Ceniriani Vargas (Ni), a primeira ocupação ocorreu em setembro de 2023, após o imóvel, que abrigava a Cia das Artes, com projetos culturais como teatro, capoeira e biblioteca, ser incluído em uma lista de mais de 90 bens municipais postos à venda. A desocupação, na época, ocorreu após um acordo com a prefeitura: o prefeito assinou um decreto destinando o prédio à moradia popular.
“O prédio ficou fechado. Em 2024, no auge da enchente, com milhares de pessoas desabrigadas, o movimento reocupou o prédio e transformou o local em abrigo”, relata Ni. A nova ocupação foi iniciada no dia 31 de maio, quando já se completavam mais de 30 dias da catástrofe climática. “Muitos abrigos estavam sendo fechados, e as famílias eram jogadas de um lado para o outro, sem encaminhamento.”

Hoje, a Ocupação se consolidou como espaço de moradia. Vinte e duas famílias vivem no local, com vínculos no território: as crianças frequentam escolas e creches da região, os moradores estão cadastrados nos postos de saúde e os espaços antes coletivos se tornaram casas com características próprias. “Já não é mais um abrigo, é um lar”, afirma Ni.
Para o coordenador municipal do MNLM, Douglas Tafarel Cordeiro, completar um ano da ocupação é mais do que uma marca de tempo: “é uma reparação histórica e uma afirmação política contra a especulação imobiliária no centro da capital gaúcha”.
“Eu nunca tinha me dado conta de que esse prédio parece um punho esquerdo erguido”, observou Cordeiro, referindo-se ao edifício ocupado. Segundo ele, a imagem simboliza o espírito de resistência da luta por moradia digna. “É uma estaca gravada no coração da especulação imobiliária de Porto Alegre.”
A ocupação, afirma, representa não apenas uma alternativa concreta de habitação popular no centro da cidade, mas também uma resposta à exclusão histórica de camadas populares. “Esse ano de ocupação é uma reparação histórica”, destacou.

Um ano de luta
Cordeiro lembra que os últimos 12 meses foram marcados por tensões. “A gente vem sofrendo vários ataques, tanto da extrema direita, com o movimento Invasão Zero, quanto dos legislativos, nos seus três níveis”, afirmou. Ele reforça que manter uma ocupação por um ano, frente a tantas adversidades, é cada vez mais desafiador. “Todas as leituras que a gente tem mostram que resistir por um ano já é muito marcante.”
Entre os ataques está o Projeto de Lei 201/2024, dos vereadores de Porto Alegre do Partido Liberal (PL), que criminaliza as ocupações. O texto estabelece proibições, pelo período de cinco anos, contados do trânsito em julgado da respectiva condenação, a quem cometer crime de “invasão” a áreas ou imóveis públicos ou privados.
O dirigente conta que, no momento, em relação ao prédio, o movimento está fazendo a defesa jurídica e, politicamente, costurando com o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) e outras instituições. “Apresentamos um plano de ação para o prédio e temos agora a proposta arquitetônica desenvolvida através da parceria com a faculdade de arquitetura.”
Essa proposta, explica, contempla iniciativas como a cozinha solidária, a biblioteca comunitária, o teatro e a proposta de moradia popular. Segundo ele, o movimento tem experiência e capacidade técnica para implementar habitação de interesse social em Porto Alegre. “Hoje, quem consegue construir moradia no centro de Porto Alegre somos nós, os movimentos sociais. A estrutura do prédio permite a construção de um projeto habitacional viável, e isso não é só uma percepção nossa, é um reconhecimento.”

Para além da moradia
Durante a comemoração, Cordeiro detalhou os diferentes espaços que hoje compõem a ocupação. Há unidades de moradia, uma biblioteca no andar superior e uma laje que funciona como espaço de convivência. “Ali a gente tem a ideia de fazer um horto medicinal. Algumas plantas já colocamos, mas seguimos, um ano depois, limpando o prédio, que estava cheio de entulho.”
Um dos espaços mais simbólicos, segundo ele, é o teatro, localizado no segundo andar. “É a nossa menina dos olhos. A transformação que fizemos nele neste ano é muito marcante e simboliza muita coisa para a cultura de Porto Alegre.” A proposta é que o local se torne um centro cultural multifuncional, com espaço para apresentações teatrais, cinema popular e cine-arte.
Cordeiro também sublinha o valor simbólico de devolver à sociedade um espaço de arte e cultura. “Quando ocupamos aqui, pensamos muito nisso. Os equipamentos de cultura precisam ser populares. Essa vai ser nossa contrapartida do movimento à sociedade civil.”
O teatro, lembra ele, remonta ao passado do prédio, que antes abrigava atividades culturais. “A gente se alimenta da arte, enquanto movimento, enquanto ser social. Dar esse retorno à sociedade é muito importante.”

Ocupar como um direito
O MNLM, que completa 35 anos em julho, tem forte histórico de atuação em Porto Alegre. “Fomos um dos primeiros movimentos a ocupar prédios no Centro. A luta do povo para retornar ao Centro é também uma resposta ao projeto histórico de expulsão dos mais pobres das áreas centrais da cidade”, lembra Ni. A Restinga, bairro periférico onde o movimento tem raízes, é um exemplo desse processo.
Essa trajetória de resistência agora ganha novo fôlego com a assinatura de contratos com o governo federal, viabilizados pelo programa Minha Casa Minha Vida – Entidades. Na semana passada foram assinados os contratos de reforma do prédio da ocupação 2 de Junho, na Borges de Medeiros, ocupado há 26 anos, e o assentamento Primavera, na rua General Salustiano, próximo ao Gasômetro, além do projeto da cooperativa 20 de Novembro, na Barros Cassal que já está em obra. A proposta é que as próprias cooperativas adquiram e reformem os imóveis, com recursos do financiamento público.
O projeto do Primavera prevê inicialmente 23 unidades, mas a expectativa é ampliar esse número com base nas atuais alterações nas diretrizes urbanísticas. Na 2 de Junho, o projeto contempla 52 famílias.
De acordo com o Observatório das Metrópoles e com o Censo de 2022, de 686.414 domicílios particulares permanentes em 2022 na capital gaúcha, 558.151 estavam ocupados, 101.013 vagos e 27.250 eram de uso ocasional. Ainda de acordo com o Censo de 2022, Porto Alegre é uma das capitais com mais domicílios vazios no país: cerca de 18,7%. Dados de 2023, do Demhab, aponta que há 32 mil pessoas sem moradia adequada.

Projeto da Ufrgs propõe uso habitacional e cultural
Além da comemoração de um ano, o local também celebrou o encerramento do semestre letivo com estudantes da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), que desenvolveram projetos de reforma do prédio em parceria com o movimento. Coordenado pela professora Ana Elísia da Costa e pela professora Daniela Cidade, o trabalho faz parte de uma disciplina que une ensino, extensão e prática colaborativa: o Projeto Arquitetônico 2.
“Essa relação com a universidade tem sido fundamental. As professoras Dani Caron, Dani Cidade e Ana Elísia têm aproximado o conhecimento acadêmico da vida real na cidade, especialmente na assistência técnica em habitação de interesse social”, destaca Ni.

Segundo a docente Ana Elísia da Costa, a ação integra também o projeto de extensão “Espaços de Convergência Social e Comunitária”, voltado ao apoio de cozinhas solidárias. “O vínculo com a ocupação começou pela cozinha da Resistência e foi se ampliando para toda a ocupação”, conta. A partir disso, os estudantes desenvolveram um estudo de viabilidade para transformar o edifício em moradia e espaço cultural.
O estudo entregue à prefeitura propõe 22 unidades habitacionais, contrapondo-se ao projeto inicial do município, que previa apenas 12. “Esse número baixo de unidades dificulta o financiamento. Nós conseguimos atingir 22 unidades, o que torna o projeto mais viável para o movimento”, explica a professora. A proposta prevê, em cada pavimento, dois apartamentos de um quarto e um estúdio.
Embora o prédio tenha funcionado como centro cultural, antes disso, como imóvel comercial da Caixa Econômica Federal, a equipe demonstrou tecnicamente que ele pode ser adaptado para uso residencial. “É um prédio viável para moradia. Os estudos mostram isso perfeitamente”, afirma Costa. Um dos principais desafios técnicos é viabilizar as instalações hidráulicas nos pavimentos superiores, de modo a manter o térreo livre para uso coletivo.
Além de questões estruturais, o projeto também pontua dificuldades em relação à iluminação e ventilação, superadas ao longo do processo. “Não há impedimento técnico para que esse espaço tenha função residencial”, completa.
Mas o objetivo do movimento, lembra a professora, não se limita à moradia. “Desde o início, a ocupação também pretende ser um espaço cultural. O antigo teatro da Cia de Arte pode voltar a funcionar, assim como o restaurante, que daria lugar à cozinha solidária. E no último andar, prevê-se um espaço multiuso para atividades culturais.”

A proposta se articula a uma reflexão mais ampla sobre o direito à cidade. Durante a disciplina, o grupo produziu uma cartografia das ocupações no centro da capital, mapeando iniciativas desde 2004. “A Ocupação Rexistência se soma a um movimento consistente de luta pela moradia em Porto Alegre. Há um conflito evidente entre o direito de habitar o Centro e os interesses da especulação imobiliária”, pontua a professora.
Ela questiona o abandono de imóveis em uma área com ampla infraestrutura urbana enquanto milhares de pessoas vivem em condições precárias nas periferias. “Por que essas comunidades não podem ter o direito de habitar no Centro?”, provoca.
Ao final, a docente enfatiza a importância da presença universitária junto aos movimentos sociais. “A luta continua. A gente percebe as enormes dificuldades que esses movimentos enfrentam. E é fundamental que a universidade apoie essas iniciativas, principalmente numa perspectiva de construção de uma sociedade mais justa.”
“Não é privilégio morar no centro”
Com 33 anos, a historiadora Márcia de Carvalho Lima vive há quase um ano na ocupação. Mãe solo de Florestan, ela chegou ao prédio ocupado no dia 23 de julho de 2024, ainda no final da gestação, em meio à maior tragédia climática da história recente do Rio Grande do Sul.
Anteriormente residindo em São José do Norte, no extremo sul do estado, Lima relata que a enchente foi decisiva para sua vinda à Capital. “A gente ficou sem transporte aquaviário. Só funcionavam balsas levando mantimentos para a cidade. Eu estava com muito medo de ter meu filho a qualquer momento e não ter assistência médica adequada”, conta.
Segundo ela, na cidade natal não havia maternidade ativa, e todos os partos eram transferidos para a Universidade Federal do Rio Grande (Furg) em Rio Grande. “Eu teria que pegar uma lancha até lá para poder ter ele. Aqui em Porto Alegre eu teria mais fácil acesso aos hospitais.”

Formada em História pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), pela Universidade Federal da Fronteira Sul, Lima já tinha vínculos com o movimento. Foi convidada pelo coordenador Douglas e pela companheira Sabrina a integrar o núcleo de resistência urbana que deu origem à ocupação.
Ela descreve esse primeiro ano como um marco em sua vida. “Foi o ano em que eu tive meu filho. Vivi a maternidade solo dentro de uma ocupação urbana, num período de pós-enchente e em ano eleitoral, quando vimos o fascismo vencer, mesmo após toda a tragédia climática no estado e em Porto Alegre.”
Para Lima, a experiência tem sido desafiadora, mas também formadora. “Percebi o quanto somos fortes. Como conseguimos nos reinventar mesmo diante das tragédias e das ameaças de despejo que nos deixam aflitas: será que vamos estar aqui amanhã? Como vai ser? O que vamos fazer?”
Ela relata a tensão constante, mas também a força coletiva que sustenta a ocupação. “É uma luta diária. O objetivo não é só conseguir o prédio, mas mostrar que morar no centro da cidade não é privilégio dos ricos. Toda a classe trabalhadora tem direito a moradia digna, de qualidade, em local seguro.”
No cotidiano, a moradora destaca os desafios e as potências da vida coletiva. “A gente vive muito nesse senso do coletivo, mas também enfrenta o individualismo, que é uma construção do capitalismo. Na ocupação, você é forçada a tomar decisões coletivas. Temos regras de convivência que precisam ser respeitadas.”
Apesar da convivência, ela relata que a maternidade permanece como uma vivência profundamente individual. “Falar em rede de apoio é complicado. As mães carregam a responsabilidade maior. Eu não deixo ninguém fazer nada para o meu filho. Nem mamadeira, nem fralda. Tudo sou eu.” Florestan nasceu em 29 de julho de 2024 e desde os 11 dias de vida a acompanha em todas as atividades. “Nunca deixei ele para trás. Está comigo na Assembleia Legislativa, nas reuniões, nos cursos, em tudo.”

Para ela, resistir também é construir memória. Como historiadora, ela fotografa e registra o processo que vive, não apenas como forma de denúncia ou relato, mas como instrumento pedagógico e político. “A história é fantástica. Registro tudo para nunca esquecer. Quero olhar para trás e entender cada passo, cada erro, cada acerto. Porque somos humanas, erramos como mães, erramos em tudo, e isso também faz parte da construção.”
A historiadora finaliza com uma reflexão contundente sobre a crise social agravada pelas mudanças climáticas. “A tendência é que esses conflitos climáticos agravem ainda mais o conflito de classe. A gente vive uma guerra de classe. Vai chegar um momento em que a classe trabalhadora não vai mais aceitar morar mal, comer mal, trabalhar mal. Eu acredito num novo processo revolucionário.”
Rexistência
Por fim, Ni destaca a importância da resistência. “Celebramos o aniversário da ocupação, os contratos assinados, a parceria com a universidade e os estudos feitos, como a cartografia das ocupações do centro. Num momento de emergência climática, essa luta também é ambiental. Temos muita casa sem gente e muita gente sem casa. Ocupações como esta evitam desmatamento, reduzem a necessidade de novas infraestruturas e mostram que é possível reaproveitar o que está abandonado.”
“A luta muda a vida. A ocupação é uma resistência com X, para garantir a nossa existência e dizer que a gente existe, a resistência está viva em Porto Alegre contra a entrega da nossa cidade para a especulação imobiliária. Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito.”

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