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Municípios campeões em queimadas concentram maiores rebanhos de gado do Brasil

Três dos cinco municípios que mais queimaram no Brasil nos últimos 40 anos – São Félix do Xingu (PA), Corumbá (MS) e Porto Velho (RO) – estão também entre os cinco maiores rebanhos bovinos do país. A constatação é resultado de um cruzamento feito pelo Brasil de Fato entre o Relatório Anual do Fogo, do MapBiomas, e o BEEF Report, publicação da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec).

 

Os dados revelam uma correlação direta entre avanço da pecuária e o uso sistemático do fogo como ferramenta de manejo da pastagem ou como ferramenta de grilagem. Quando ampliamos o espectro para os dez municípios com maior área queimada desde 1985, encontramos cinco entre os dez maiores rebanhos. A maior parte deles está nos biomas Amazônia e Cerrado, regiões onde o fogo é usado tanto para abrir áreas quanto para manter pastagens já estabelecidas.

Grilagem e manejo com fogo caminham juntos

A pesquisadora Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coordenadora do MapBiomas Fogo, explica a lógica por trás da coincidência entre as duas listas de municípios: além do uso do fogo na Amazônia em um manejo precário da pecuária, ele se tornou um instrumento barato de grilagem de terras públicas.

“Nem toda a pastagem na Amazônia tem como principal objetivo ser uma pastagem. Em terras públicas, o objetivo principal muitas vezes é grilar terra”, afirma. “A indústria da grilagem usa o pasto como fachada, porque é um investimento mais barato. Em vez de preparar a terra com máquinas e infraestrutura, o fogo é o método mais rápido e acessível.”

Além de facilitar a ocupação ilegal da terra, o fogo é uma solução de baixo custo para renovar o pasto em áreas extensas, com pouca infraestrutura e baixa densidade de gado.

“É mais barato que investir em vaqueiros, cercamento ou manejo adequado. E isso explica por que o fogo aparece com tanta força nesses territórios”, completa a pesquisadora.

Amazônia concentra queimadas em pastagens

De acordo com uma nota técnica do MapBiomas sobre pastagens plantadas, 83% da área de pasto na Amazônia já foi atingida por fogo ao menos uma vez desde 1985. Em 76% dos casos, o fogo voltou mais de uma vez. Apenas em 2024, a Amazônia concentrou 86% da área de pastagens queimadas no Brasil, o equivalente a 4,9 milhões de hectares.

Mais do que uma prática de manejo, o uso do fogo tem se tornado vetor de degradação florestal. A pesquisadora Ane Alencar destaca que 2024 foi o pior ano de incêndios florestais na Amazônia desde o início da série histórica do MapBiomas. E, pela primeira vez, com os incêndios potencializados por uma seca severa, a maior parte das queimadas atingiu florestas.

Essa nova característica pode trazer danos irreversíveis para a Amazônia. “Neste ano, a gente tem uma área de floresta muito maior que está super suscetível a novos incêndios, mesmo sem uma seca severa”, explica a pesquisadora. “Estamos herdando um déficit hídrico das secas dos últimos anos, o que já cria uma condição de estiagem fora da normalidade. Além disso, há uma área significativa de floresta que já foi impactada pelo fogo e, portanto, está mais aberta e vulnerável.”

“A floresta passou um limite de inflamabilidade. Com o acúmulo de folhas secas no chão e menos água disponível, o fogo consegue subir até a copa das árvores. E aí o dano é muito maior”, alerta. “Uma floresta queimada leva cem anos para recuperar sua biomassa. E, nos primeiros dez anos, ela emite mais carbono do que absorve.”

Município/EstadoÁrea queimada
1985 – 2024 (ha)
Ranking de rebanho
bovino (2023)
Bioma principalPrincipal atividade econômica
Corumbá/MS3.841.6611º (2.052.969 bois)PantanalPecuária
São Félix do Xingu/PA3.135.3552º (1.839.061)AmazôniaPecuária
Altamira/PA1.539.7145º (1.139.564)AmazôniaPecuária
Cumaru do Norte/PA1.390.812AmazôniaPecuária
Formosa do Rio Preto/BA1.388.520CerradoGrãos
Porto Velho/RO1.255.5563º (1.269.609)AmazôniaPecuária
São Desidério/BA1.199.767CerradoGrãos
Novo Progresso/PA1.172.427AmazôniaPecuária
Cocalinho/MT1.171.93621º (577.098)CerradoPecuária
Balsas/MA1.171.108CerradoGrãos
Paranatinga/MT1.127.089CerradoGrãos
Cáceres/MT1.094.39911º (1.024.328)PantanalPecuária
Alto Parnaíba/MA1.000.736CerradoGrãos
Formoso do Araguaia/TO980.905CerradoPecuária
Vila Bela da Santíssima Trindade/MT958.1718º (1.016.540)AmazôniaPecuária
 

Pantanal entra no radar do colapso climático

Na esteira das mudanças climáticas, embora o avanço da pecuária com uso intensivo de fogo seja historicamente associado à Amazônia e ao Cerrado, o município com maior área queimada acumulada do país está no Pantanal: Corumbá (MS). Com quase meio milhão de hectares de pastagens atingidas por queimadas apenas entre janeiro e outubro de 2024, a cidade também lidera o ranking de rebanhos bovinos.

O pesquisador Eduardo Rosa, coordenador de mapeamento do Pantanal no MapBiomas, explica que o bioma tem se tornado mais vulnerável devido à mudança no regime de chuvas.

“Desde 2018, temos enfrentado períodos mais longos de seca no bioma”, afirma. “O Pantanal depende das chuvas que caem no seu entorno, em áreas do Cerrado e da Amazônia. Como essa dinâmica mudou, o bioma tem sofrido mais – e isso se reflete diretamente na incidência de fogo.”

Ele destaca que as áreas mais afetadas estão próximas ao rio Paraguai, onde a diminuição dos pulsos de inundação favorece o crescimento e o acúmulo de biomassa – que depois seca e se torna combustível.

“O clima mais seco permite que a vegetação cresça em um ano e queime no seguinte. O fogo segue o rastro da seca.”

Ciclo do boi: desmatamento, queimada e pastagem

A lógica da ocupação do território nas regiões de fronteira agrícola segue um padrão conhecido: primeiro, o desmatamento; depois, o fogo para “limpar” o terreno; em seguida, a formação de pasto e a introdução do gado. Essa sequência, repetida há décadas, ainda sustenta o avanço da pecuária sobre florestas e savanas no Brasil.

Segundo o pesquisador George Sturaro, da ONG Mercy For Animals, ouvido pelo podcast Conversa Bem Viver, esse modelo opera com o uso intensivo do fogo em dois momentos: após o desmatamento e na renovação do pasto. “É a forma mais barata de manejo. Toca-se fogo para limpar e, depois, para replantar o capim”, explicou ao Brasil de Fato.

O dossiê “Agro é Fogo”, elaborado por uma rede de movimentos populares, e publicado em 2024, mostra que essa prática não está restrita à Amazônia. No Pantanal e no Cerrado, grandes incêndios têm origem comprovada em fazendas de gado, com implicações diretas para a vida de comunidades tradicionais, como quilombolas e indígenas. O fogo, nesse contexto, é também arma para expulsão de comunidades tradicionais, além da grilagem de terras.

A substituição de vegetação nativa por monoculturas e pastagens consolida o que pesquisadores vêm chamando de “ciclo da boiada”: um modelo de ocupação predatório, intensificado a partir da ditadura militar e aprofundado nas últimas décadas. Entre os motores desse processo, estão a produção de carne bovina e o cultivo de grãos, como soja e milho, voltados majoritariamente à exportação e à alimentação de animais confinados.

Esse modelo, alertam especialistas, não apenas concentra terras e desloca populações, mas também colabora diretamente para o agravamento da crise climática, aumentando a emissão de gases de efeito estufa e deixando biomas inteiros cada vez mais inflamáveis.

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