

Não é novidade que Israel age como representante dos interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio. Mas, desde que o público estadunidense tem rejeitado o envolvimento direto do país em mais guerras na região, o papel dos israelenses como instrumento do ocidente se tornou ainda mais evidente, como visto neste confronto com o Irã.
Isso exime os EUA e demais países de intervir diretamente e coloca os israelenses como “bucha de canhão” para os seus objetivos no Oriente Médio em troca da manutenção do regime de supremacia judaica sobre os palestinos.
O atrito entre EUA e Israel por causa do cessar-fogo com o Irã, com direito a reprimendas públicas de Donald Trump ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, chama atenção do mundo a respeito de quem manda nessa relação. Diversos analistas representaram a ação israelense contra o Irã como uma armadilha para o país norte-americano.
O pesquisador iraniano baseado nos EUA, Trita Parsi, afirmou que os israelenses criaram uma fantasia de que seria possível obter um comprometimento iraniano de deixar de enriquecer urânio. Israel sabia que Teerã não aceitaria essa demanda, o que criaria o contexto para a agressão militar. Depois do início do conflito por Israel, Netanyahu exigiu que Trump atacasse as usinas iranianas com bombas capazes de perfurar bunkers subterrâneos que apenas os EUA possui.
“O governo Trump basicamente perdeu o controle de sua política externa. Israel agora está ditando a política dos EUA no Oriente Médio. Eles estão claramente no comando”, avaliou Stephen Semler, pesquisador sênior do Centro de Política Internacional. No público americano, da esquerda à direita, há uma crescente insatisfação com a interferência israelense na política externa dos EUA.
De fato, como argumenta o estadunidense John Mearsheimer, o lobby israelense tem bastante influência nos EUA. A invasão do Iraque, em 2003, para destituir Saddam Hussein teria sido resultado de grande influência israelense. Assim como Israel fez agora contra o Irã, os EUA promoveram um “ataque preventivo” para impedir o suposto desenvolvimento de “armas de destruição em massa” pelos iraquianos, como as bombas nucleares que Netanyahu diz que o Irã estaria prestes a obter.
Contudo, intelectuais, como o estadunidense Noam Chomsky e o palestino Adam Hanieh, apontam que Israel não passa de um instrumento para os interesses ocidentais no Oriente Médio.
Essa percepção foi reforçada por declaração recente do ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Friedrich Merz, em relação à agressão israelense ao Irã. “É o trabalho sujo que Israel está fazendo por nós.” A bronca de Trump em Netanyahu foi uma clara tentativa de o presidente dos EUA reafirmar sua superioridade e colocar o israelense em seu lugar.
O papel de Israel no imperialismo americano
Israel é o principal fator de instabilidade no Oriente Médio desde a sua fundação, em 1948, a partir da Nakba, termo em árabe que os palestinos usam para designar o processo de limpeza étnica que provocou a expulsão de 750 mil pessoas e a destruição de 500 vilarejos.
Além da agressão ao Irã (mais de 500 mortos) e do genocídio em Gaza (65 mil mortos oficiais, mas com estimativas de 377 mil desaparecidos), Israel também atacou, nos últimos dois anos, Líbano (de 3,7 mil a 4 mil mortos), Síria (557) e Iêmen (32).
Israel diz agir em sua defesa, mas, na realidade, busca derrotar todas as forças antagônicas à hegemonia ocidental na região. O objetivo é assegurar a segurança energética dos EUA e de seus aliados através do livre acesso ao petróleo e ao gás na região.
Na Guerra Fria, Israel atuou ao lado dos EUA para derrotar líderes nacionalistas que defendiam a soberania sobre os seus recursos naturais. Em 1953, o serviço secreto israelense, o Mossad, ajudou a CIA americana e o MI-6 britânico a dar um golpe contra o presidente iraniano Mohammed Mossadegh, que havia nacionalizado o petróleo do país. Em 1956, Israel invadiu o Egito, a mando de França e Reino Unido, depois que o presidente Gamal Abdel Nasser nacionalizou o Canal do Suez.
LEIA TAMBÉM:
- Trump e Netanyahu estão flertando com o fim do mundo – e mentindo para você
- Primeiro, Trump bombardeia o Irã. Depois, pede paz.
- Propaganda de guerra e tecnologia de vigilância: por que Israel pagou viagem de prefeitos brasileiros
A partir da guerra de 1967, quando Israel derrotou — através de um “ataque preventivo” — Egito, Síria e Jordânia e ocupou Cisjordânia e Gaza, os EUA expandiram a sua ajuda militar para assegurar vantagem militar israelense sobre os seus inimigos. Isso foi central para retirar a União Soviética da geopolítica do Oriente Médio depois da Guerra do Yom Kippur, em 1973.
Apesar da derrota do nacionalismo árabe, a revolução islâmica no Irã, em 1979, inspirou novos grupos guerrilheiros inimigos de Israel e dos EUA, como o palestino Hamas e o libanês Hezbollah. Isso renovou a importância estratégica israelense para o ocidente.
O secretário de Estado do ex-presidente dos EUA Ronald Reagan, Alexander M. Haig, fez uma famosa analogia sobre o aliado do Oriente Médio: “Israel é o maior porta-aviões americano, é inafundável, não carrega nenhum soldado americano e está localizado numa região crítica para a segurança nacional dos EUA”.
Petróleo, os neoconservadores e a guerra ao terror
Os defensores da ideia de que o lobby israelense teria levado os EUA para guerras supostamente indesejadas contra o Iraque, em 2003, e o Irã, em 2025, são limitadas por duas razões.
Em primeiro lugar, a importância que o acesso ao petróleo tem para a política externa dos EUA. Isso é implícito desde a Doutrina Eisenhower, de 1957, que autorizava o uso da força contra nacionalistas, a exemplo de Nasser, que ameaçassem o fluxo de petróleo para o Ocidente – interrompido durante a Crise do Suez, em 1956. Irã e Iraque, governados por forças nacionalistas durante as agressões ocidentais, têm a terceira e a quinta maiores jazidas de petróleo do mundo, respectivamente.
A segunda razão é que, desde os anos 1980, o neoconservadorismo americano – uma ideologia anticomunista e anti-islâmica que reivindica a liderança mundial dos EUA pela força – defende a guerra contra países de maioria muçulmana que representem uma ameaça à segurança energética dos EUA. A ideia é que essas sociedades devem ser reconstruídas do zero para se tornarem aliadas ocidentais.
Na Guerra Irã-Iraque (1980-88), os EUA forneceram armas para ambos os lados, pois o objetivo era enfraquecer tanto o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder iraniano, como Saddam Hussein. Após o 11 de setembro, os neoconservadores elaboraram a doutrina da “guerra ao terror”, que resultou nas invasões do Afeganistão e Iraque, e em demais intervenções militares no Oriente Médio. Embora enfraquecidos, eles permanecem influentes no governo Trump.
Netanyahu, herdeiro da doutrina da “muralha de ferro” do sionismo revisionista, que defendia uma estratégia agressiva contra as nações árabes, foi também profundamente impactado pelo neoconservadorismo desde o seu primeiro mandato, em 1996. Na ocasião, foi aconselhado, através do relatório A Clean Break: A New Strategy for Securing the Realm (Uma ruptura limpa: Uma nova estratégia para proteger o reino, em tradução livre), a romper os Acordos de Oslo, e confrontar Hezbollah, Síria e Irã.
Desde então, Netanyahu afundou as negociações diplomáticas com os palestinos e convenceu os EUA a abandonar a solução de dois estados; impôs a maior derrota da história do Hezbollah, em setembro de 2024; e auxiliou os EUA na deposição de Bashar Assad, um remanescente do nacionalismo árabe, na Síria, em dezembro de 2024. O Irã era, naturalmente, o próximo da fila.
Antissemitismo e antissionismo
Contudo, nessa guerra contra o Irã, que certamente interessa aos EUA e seus aliados, não são os civis ocidentais que estão com a sua vida em jogo, mas os israelenses, os palestinos e os demais povos da região.
Os ataques iranianos danificaram infraestruturas importantes de Israel, como hospitais, a bolsa de valores, refinarias de petróleo e o porto de Haifa. Assim, limitaram o plano de Netanyahu de fazer Israel um hub comercial entre Ásia e Europa como parte do India-Middle East-Corridor, IMEC – o principal projeto ocidental para rivalizar com a China na região.
A proteção ocidental a Israel empodera as suas alas militaristas e extremistas, resultando em uma sociedade com características fascistas que apoia a expulsão dos palestinos de Gaza (82% dos israelenses judeus, segundo pesquisa) e essa política externa agressiva (80% apoiam a agressão ao Irã). Os interesses do imperialismo americano se camuflam sob o projeto dos fundamentalistas judeus de constituir uma “Grande Israel” do Rio Nilo ao Rio Eufrates.
‘É preciso rever elementos estruturais do Estado de Israel’
O rabino Brant Rosen, da sinagoga antissionista Tzedek de Chicago, nos EUA, afirma que, diferente do prometido pelo movimento sionista, o Estado de Israel traz insegurança para os judeus. E a razão não seria o antissemitismo, como experimentado na Europa no início do século XX, mas a opressão dos palestinos e a sua associação ao imperialismo dos EUA.
Além dos israelenses mortos no confronto com o Irã, foram 1.100 no ataque palestino de 7 de outubro; 500 militares em ação em Gaza; e mais de cem civis e militares nos confrontos com o Hezbollah. Ainda há um transbordamento da oposição a Israel em violência contra judeus, resultando no aumento de casos reais de antissemitismo no mundo.
Judeus americanos, como o movimento antissionista Jewish Voice for Peace, já acordaram para os perigos da associação entre EUA e Israel e têm defendido uma transformação profunda da relação entre os países para permitir a libertação da Palestina e uma nova configuração política do Oriente Médio.
Ainda é preciso que os judeus israelenses também se levantem contra o papel de Israel no imperialismo americano. Mas não basta derrubar o governo Netanyahu, que é apenas a superfície de um problema visto desde a fundação do país.
É preciso rever elementos estruturais do Estado de Israel – incluindo a sua ideologia sionista – para pôr fim ao regime de supremacia judaica contra os palestinos e à política externa agressiva contra os povos da região.
O post Guerra com Irã reforça que Israel é só uma ‘bucha de canhão’ dos EUA apareceu primeiro em Intercept Brasil.