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‘Fim da escala 6×1 vai quebrar a economia?’: especialistas questionam estudos da Fiemg e da FGV

Dois estudos lançados recentemente pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) apontam para uma possível “catástrofe econômica”, caso o fim da escala de trabalho 6X1, que permite apenas um dia de folga para seis trabalhados, seja aprovado no Congresso Nacional. Mas será que isso é verdade?

 

Ezequiela Scapini, doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora de Sociologia e Economia do Trabalho, destaca que “perspectivas alarmistas”, como as divulgadas pelos estudos, também foram utilizadas desde a abolição da escravatura, passando pela implementação do 13º salário, até a política de valorização do salário mínimo dos primeiros governos Lula (PT).

“O ‘economiquês’, por vezes, causa um verdadeiro terrorismo”, afirma.

Além disso, o “sensacionalismo” é ilusório, porque, como aponta Pietro Borsari, doutor em economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) do Instituto de Economia da Unicamp, não existe algo como “quebrar a economia nacional”.

“As grandes empresas e grandes redes de comércio e serviços estão empenhadas em resistir a essa mudança não porque ‘quebrariam’, mas porque isso poderia reduzir a margem de lucro, uma vez que seus negócios são lucrativos, em larga medida, porque a força de trabalho brasileira é barata”, afirma Borsari.

O debate sobre a redução da jornada de trabalho ganhou força ao ser tema da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 8/2025, de autoria da deputada federal Erika Hilton (Psol-SP). O projeto propõe uma escala de quatro dias de trabalho e três de descanso (4X3), em expediente de, no máximo, oito horas diárias, ou seja, 36 horas semanais. Apesar do amplo apoio popular, a proposta segue travada no legislativo federal.

Encabeçada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT), a discussão tomou as ruas e as redes. E, agora, vai ser pauta de um plebiscito popular “por um Brasil Mais Justo”, cuja semana nacional de votação ocorre entre os dias 1º e 7 de setembro.

Estudos carregam graves falhas

Postulado por Fernando de Holanda Barbosa Filho, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), o primeiro estudo, calcula que, com o fim da jornada 6X1, o valor adicionado pelo trabalho à economia cairia 6,2%.

Ou seja, o cálculo realizado chegou à média de que cada hora trabalhada em 2024 adicionou R$41,60 ao produto. Dessa forma, segundo o levantamento, com a mudança, seriam retirados da economia R$ 527,2 bilhões. Ainda de acordo com o estudo, a produtividade do trabalho brasileiro “tem evoluído de forma medíocre”, o que inviabilizaria a compensação da perda por um aumento de produtividade dos trabalhadores.

A pesquisa estimou impactos sobre toda a economia, formal e informal, a partir, principalmente, de dados do IBGE. Para Borsari, pressupor que a mudança impactará igualmente o setor formal e informal, é um erro.

“A relação entre os setores formal e informal é complexa e certamente o impacto não ocorreria dessa forma”, explica o economista.

Já no segundo caso, o estudo da Fiemg pressupõe os impactos somente no mercado formal. A análise partiu da premissa de que a redução da jornada levaria a uma redução do total produzido em bens e serviços. A pesquisa também considera uma redução proporcional de salário, porém, os cálculos efetivos não foram apresentados no estudo.

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Apesar de utilizar metodologias simples, Pietro Borsari, aponta que os estudos carregam graves falhas, uma vez que fazem uma generalização de todos os setores e tamanhos de empresas; partem de dados estáticos incapazes de demonstrar toda a complexidade do cenário e não levam em conta nenhum aspecto qualitativo do trabalho, ou a questão ética inserida no debate da jornada de trabalho.

“Além disso, nenhum dos estudos indicou quantas pessoas no Brasil trabalham na escala 6×1. E não o fizeram porque esse dado não existe. Ou seja, os estudos fizeram estimativas ousadas sem possuir sequer essa variável, de modo que adotaram simplificações pouco críveis “, ressalta Borsari.

“Não é possível fazer uma associação de matemática simples: reduzir a jornada, aumento de custos do trabalho, queda do PIB. A economia não se dá de forma fragmentada”, corrobora Scapini.

Perspectiva simplista

Ainda de acordo com Borsari, a pior falha está em pressupor que uma análise estática daria conta de prever o comportamento dos atores econômicos, diante do fim da escala de trabalho 6×1 e da redução de jornada.

“Isso é muito pouco para lidar com o tamanho da mudança proposta. A razão de elaborarem a análise assim é que seria impossível prever os encadeamentos gerais, em toda a economia, decorrentes de mudanças na jornada de trabalho dessa natureza”, defende o economista.

Para Scapini, há ainda outros fatores deixados de fora nas pesquisas: a possibilidade de um maior equilíbrio entre trabalhadores com sobrejornada e trabalhadores subutilizados, que trabalham menos que o necessário para sobreviver; e a importância do aumento do consumo no giro da economia.

Dessa forma, os levantamentos também desconsideram, na opinião da socióloga, que a redução da jornada e uma maior divisão social do tempo de trabalho pode gerar mais empregos e, em decorrência do tempo livre, mais consumo.

“A economia não depende só do trabalho, também depende do consumo, sendo que um dos meios de acesso está no tempo para lazer. Isso não é novo. O próprio fordismo buscou definir tempo de trabalho e tempo de lazer com o intuito de aumentar o consumo. E já sabemos que, quanto maior o consumo, maior é a produção”, aponta.

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Ou seja, assumir que a redução legal da jornada vai implicar em uma redução direta do produto é, de acordo com Borsari, desconsiderar as diversas reações possíveis de cada unidade produtiva, como a reorganização do tempo de trabalho, melhoria de processos, investimento em novos instrumentos de trabalho e tecnologia, etc.

“Portanto, esses estudos simplificam em demasia a realidade para ‘entregar um número’”, analisa o economista.

E a competitividade?

Quanto ao argumento de que a redução da jornada seria inviável em decorrência da baixa produtividade do trabalho brasileiro, Scapini e Borsari lembram que a escala 6×1 é muito mais presente no comércio e nos serviços e, portanto, essas seriam as áreas que passariam por maiores ajustes com a mudança na legislação.

Borsari aponta que esses “são setores para os quais os diferenciais de produtividades entre economias em desenvolvimento e desenvolvidas são menores”. Ou seja, embora a produtividade do trabalho em geral (levando em conta outros setores, como a indústria) seja realmente mais baixa, esse parâmetro é pouco aplicável às áreas mais afetadas pela mudança na escala.

“Basta pensar no salão de beleza, no cozinheiro, no garçom do restaurante, no vendedor de roupas: esses profissionais, no Brasil, produzem menos por hora do que na Alemanha, Suíça e França? Um garçom em São Paulo atende menos pedidos, limpa menos mesas e entrega menos pratos que um garçom em Zurique? Podemos imaginar que a resposta é não”, exemplifica.

Para o economista, por serem setores não exportáveis, o apelo ao argumento da competitividade faz menos sentido. “Como a redução da jornada do vendedor de roupas, do farmacêutico ou da esteticista perderia competitividade para os trabalhadores chineses? A China nos exportaria cortes de cabelo?”.

Ele explica ainda que a diferença salarial percebida entre os trabalhadores desses setores em países desenvolvidos e em desenvolvimento não está ligada a sua baixa produtividade, mas ao nível de complexidade da economia, o que comprovaria a necessidade de construir um projeto nacional de desenvolvimento que amplie a complexidade da produção na economia como um todo, sobretudo nos setores mais avançados, elevando os salários em geral.

“Economias mais complexas, com maior sofisticação produtiva, sobretudo nos setores de manufaturados, tecnológicos e de serviços de alto valor agregado, geram uma massa de rendimentos e riqueza que transbordam para o restante da economia, de modo a impactar positivamente os salários dos setores de menor produtividade”, pontua.

Já Scapini chama a atenção para o fato de que fazer com que o trabalhador esteja na escala 6×1, por isso só, não garante a produtividade ou o aumento dela. “Um trabalhador exausto trabalha menos e, consequentemente, impacta na produtividade”.

Contraponto

O Transforma Unicamp, um Think Tank direcionado à economia, em sua nota nº 13 ‘O Brasil está pronto para trabalhar menos. A PEC da redução da jornada e o fim da escala 6×1’, aponta que as extensas jornadas de trabalho praticadas no Brasil, somadas às horas de trabalhos domésticos, cuidados e ao tempo de deslocamento, principalmente em grandes cidades, tornam inviável a manutenção de uma vida saudável e equilibrada.

Esse dado é especialmente alarmante no caso das mulheres, que, na prática, têm uma jornada média de trabalho (entre remunerado e não remunerado) de mais de 11 horas diárias.

“Os resultados disso são críticos, ainda que não surpreendentes: ao longo do ano de 2024, o Brasil registrou mais de 470 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais”, aponta a nota, construída em parceria com o Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit/IE/Unicamp).

Nesse sentido, como demonstram os dados, as jornadas abusivas têm gerado intenso comprometimento de diversas dimensões da vida dos trabalhadores, afetando sua saúde física e mental. De acordo com Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o número de pedidos de demissão tem crescido exponencialmente, estando, em sua maioria, associados à escala 6×1.

Dessa forma, segundo o estudo, “o fim da escala 6×1 e a redução da jornada de trabalho se projeta para além do argumento de melhoria da produtividade do trabalho e representa a oportunidade de avanço sobre uma distribuição mais justa do valor produzido socialmente”.

O documento argumenta ainda que, em uma economia com uma grande parcela de pessoas empregadas em atividades que dependem diretamente da renda (como o comércio e os serviços), a diminuição da jornada e, por consequência, a demanda de mais contratações não deveriam ser vistas somente como aumento de custos, “mas sim como uma oportunidade de fortalecer a participação da renda do trabalho na composição da renda nacional”.

Na prática, segundo a pesquisa, a resistência de setores em aceitar a mudança se dá por um não reconhecimento de quão contraproducentes são jornadas extenuantes, reduzindo a produtividade e levando ao adoecimento e à exaustão.

Outro fator ignorado é o quanto os avanços tecnológicos podem aumentar a produtividade, reduzindo, em vários setores, a necessidade de contratação, mesmo com a diminuição da jornada. No caso de empresas menores, processos mais efetivos, formação adequada aos empreendedores e melhor gestão de recursos podem suprir uma possível lacuna gerada.

“A análise sugere que a redução da jornada de trabalho é uma medida não apenas viável, mas essencial para promover a saúde ocupacional, a estabilidade no mercado de trabalho e
uma redistribuição mais equitativa da renda. As experiências de empresas que já implementaram jornadas reduzidas mostram que é possível equilibrar produtividade e bem-estar”, destaca o Think Tank.

De onde vem o sensacionalismo?

Para Ezequiela Scapini, as pesquisas da Fiemg e da FGV demonstram um “claro posicionamento em defesa do empresariado e de seu lucro, em detrimento da saúde dos trabalhadores”.

“No caso do primeiro estudo, a isenção é absolutamente questionável: a própria entidade representativa de classe (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais) encomendou o estudo, de modo que o único resultado aceitável, possível e divulgável para quem encomendou seria algum que favorecesse seus interesses de classe”, corrobora Borsari.

Para ele, no estudo da FGV, o que complica o resultado não é a isenção da instituição mas a fragilidade da metodologia utilizada.

Nova escala seria mais humana

Por fim, ambos os especialistas apontam para uma questão fundamental a ser debatida pela sociedade brasileira: é ético e humano explorar o trabalhador considerando a produtividade?

Para Scapini, frente a essa questão, é preciso combater a ideia que a economia é só números e lucros.

“Há questões estruturais no nosso mercado de trabalho que a redução da jornada de trabalho por si só não vai resolver, mas ela é um passo, um passo importante, tanto para a economia quanto para o trabalhador”, conclui a socióloga.

Borsari defende que a questão fundamental está em entender se as empresas que somente sobrevivem porque super exploram seus trabalhadores deveriam ser preservadas.

“Deveríamos nos preocupar é em construir uma economia com maior sofisticação produtiva, que absorva parte maior da força de trabalho, com capacitação dos trabalhadores, gerando ocupações de qualidade – salários maiores, direitos trabalhistas garantidos e jornada de trabalho digna – para se viver uma vida que valha a pena ser vivida”, afirma.

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