Após a aprovação definitiva da adesão ao Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag) pelo plenário da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) no início deste mês, o debate sobre o futuro das empresas públicas mineiras, como a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), voltou a ganhar atenção.
O Propag é um plano alternativo ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para o pagamento da dívida do estado com a União, que alcançou cerca de R$ 165 bilhões durante as gestões do governador Romeu Zema (Novo).
O programa congela o valor principal da dívida e prevê mecanismos de redução do índice adicional, permitindo o refinanciamento do débito em um prazo de 30 anos, com a possibilidade de amortização do saldo devedor mediante, entre outras possibilidades, o repasse à União de ativos, entre eles empresas públicas.
Sob esse argumento, estão em tramitação na ALMG projetos de lei que discutem a possibilidade de federalização da Cemig e de outras estatais. Fundada em 1952 por Juscelino Kubitschek, a companhia é considerada estratégica para o desenvolvimento econômico e social de Minas Gerais, além de ser uma das maiores empresas integradas do setor de energia elétrica da América Latina, em quantidade de clientes e em tamanho de rede de instalações.
Papel estratégico na transição energética
Pela sua relevância, Emerson Andrada, coordenador do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro/MG), defende que a empresa continue sob gestão da população mineira. Mas, caso ela seja federalizada, na avaliação dele, a Cemig poderia ser usada pelo governo federal como um importante vetor de condução da política energética brasileira.
“Desde que a Eletrobrás foi privatizada, o governo federal perdeu seu instrumento de gestão da política energética. Com os desafios de transição para um modelo mais sustentável de energia, é preciso uma empresa que seja capaz de conduzir a ampliação do setor no Brasil, sem a sanha do mercado financeiro e dos grandes empresários, que buscam o próprio enriquecimento e não a preservação do planeta”, defende.
Ou seja, para Andrada, ter uma empresa estratégica atuando nacionalmente no setor elétrico poderia direcionar as políticas para que a transição energética — que compreende, por exemplo, a substituição de fontes fósseis e poluentes por alternativas renováveis e sustentáveis —, necessária no atual contexto de emergência climática, sirva para a preservação da natureza.
“Para que haja a garantia de que estaremos, após esse período de transição, numa condição de gestão da energia melhor do que a que temos hoje. Porque, se a gente não for capaz de parar o aquecimento global, a sobrevivência no planeta ficará comprometida. A Cemig pode dar uma importante contribuição e o governo federal poderia ser exemplo para o mundo”, continua o coordenador do Sindieletro/MG.
Ampliação da capacidade do Estado
A Eletrobrás foi privatizada oficialmente em 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), num processo que pode ser considerado a maior privatização brasileira feita desde a Telebrás, vendida em 1998. Em 2021, a empresa era responsável por aproximadamente um terço da capacidade de geração de energia elétrica no Brasil, além de ser dona de quase metade das linhas de transmissão do país.
Na época da venda da estatal, especialistas já alertavam que as consequências poderiam ser várias, incluindo a maior frequência de apagões e o aumento do custo da energia para a população.
Passados três anos, o deputado estadual e presidente da Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social da ALMG, Betão (PT), avalia que a privatização da Eletrobrás foi um “desastre” e que a Cemig poderia ajudar a recompor a capacidade do Estado no setor elétrico.
“A privatização da Eletrobrás tirou a capacidade do Estado de garantir energia acessível e segura para todos. Uma Cemig federalizada poderia recompor parte dessa perda, atuando como um braço forte no setor elétrico, retomando o controle de ativos estratégicos e freando a entrega do setor ao capital estrangeiro”, destaca.
O parlamentar ainda avalia que a estatal mineira poderia retomar investimentos em regiões negligenciadas pelo setor privado; assegurar estoques energéticos, evitando apagões; e investir em projetos de pesquisa e inovação que foram abandonados após a privatização da Eletrobrás.
Atualmente, a Cemig atua em 774 municípios mineiros, atendendo a cerca de nove milhões de clientes. Boa parte das cidades são pequenas, com áreas rurais, e não geram lucro, o que demonstra a responsabilidade social da empresa. Normalmente, as empresas privadas priorizam atuar em áreas que geram maior rendimento. Ainda assim, o lucro da companhia mineira foi de R$ 7,1 bilhões em 2024.
“Ou seja, caso a Cemig seja federalizada, ela poderia assumir um papel estratégico no planejamento energético nacional, garantindo que a geração e a distribuição de energia atendam principalmente aos interesses do povo braisleiro e não ao lucro de acionistas privados. Como empresa pública, poderia fortalecer a soberania energética do país, além de investir em fontes renováveis”, avalia o deputado estadual Betão.
Empresa está sob ataque
Antes mesmo de o Propag ser apresentado como alternativa para a dívida do estado, o governador Romeu Zema, desde a sua primeira eleição, defende a privatização das empresas públicas, incluindo a Cemig.
Neste momento, enquanto tramitam na ALMG os projetos de lei referentes à adesão ao programa, está em discussão também a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 24, que visa retirar da carta magna mineira dois mecanismos que protegem as estatais estratégicas de Minas: a obrigatoriedade do voto favorável da maioria qualificada dos deputados e de realização de um referendo popular para alienar as ações das empresas.
Além disso, existem denúncias de que o governo estadual e a atual gestão da Cemig já operam em uma lógica privada, terceirizando serviços e desmontando a estrutura da companhia, como forma de, entre outras coisas, descredibilizá-la perante a população e construir maioria social favorável à privatização. Em 2022, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), realizada pela ALMG, identificou uma série de irregularidades na condução da estatal, como interferências do partido Novo, aparelhamento, espionagem, contratações ilegais, corrupção passiva e tentativas de desinvestimento.
Diante desse cenário, eletricitários, sindicalistas e outras entidades da sociedade civil temem quais são as reais intenções de Zema. No dia 17 de junho, uma audiência pública na Assembleia Legislativa se transformou em um ato em defesa da Cemig e da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), que também está no centro das discussões sobre a federalização ou privatização.
Riscos e alternativas
Para os participantes da reunião, manter as empresas sob controle do Estado mineiro pode, na verdade, a longo prazo, ajudar a quitar a dívida com a União.
O Propag não restringe a possibilidade de amortização da dívida ao repasse de ativos para o governo federal, considerando, por exemplo, investimentos em áreas como saneamento como uma das formas de renegociação. Outra opção seria, ao invés de federalizar as empresas, federalizar os seus lucros e dividendos, durante um período de tempo.
De todo modo, para Emerson Andrada, caso o processo de federalização da Cemig siga adiante, é necessário construir barreiras de proteção do caráter público da empresa, que, sob controle federal, também poderia sofrer risco de privatização durante gestões de governos que defendem a redução do papel do Estado.
“Nós propusemos que os estados que federalizassem suas empresas tivessem um prazo de 20 anos para readquiri-las. Isso permitiria a recuperação de seus ativos estratégicos e garantiria que, durante esse período, o governo federal não privatizaria essas empresas. Essa proposta não foi aprovada e não constou no Propag. Na verdade, o decreto que regulamenta o programa impede essa possibilidade”, denuncia.
“Mas, como está no decreto e não na lei, o que Minas Gerais deveria estar fazendo é buscar que o trecho fosse revogado e o Estado pudesse retomar as empresas federalizadas depois de equacionar as duas dívidas”, continua.
O deputado estadual Betão defende que, para que a federalização não seja uma “etapa para a privatização”, é preciso vincular a Cemig ao projeto nacional de desenvolvimento, com medidas como o aprimoramento do marco legal; a criação de uma lei federal que blinde a empresa contra futuras tentativas de desestatização; além da garantia da participação de trabalhadores, usuários e movimentos sociais na gestão da companhia, com conselhos deliberativos que fiscalizem a empresa.
“Também assegurar orçamento próprio e reinvestimento de lucros para evitar o sucateamento da Cemig, tática comum para justificar privatizações. E compromisso com políticas de Estado, vinculando às ações da empresa a diretrizes de soberania energética e direitos sociais, impedindo que governos futuros a desvie de sua função pública. Federalizar sem um plano de resistência ao capital privado é insuficiente”, conclui o parlamentar.
O post Federalização da Cemig: a estatal mineira pode preencher lacunas da privatização da Eletrobrás? apareceu primeiro em Brasil de Fato.