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‘Exu te ama e está voltando!’: grupos afro-religiosos confrontam intolerância evangélica

 
SÃO PAULO SP, BRASIL, 13.08.2023: MARCHA-EXU - Primeira edição da Marcha para Exu é realizada na avenida Paulista, região central da cidade, neste domingo (13). Evento, que homenageia uma figura central para religiões afrobrasileiras como umbanda e candomblé, quer afastar associação com diabo e mostrar 'Exu do amor'. (Foto: Bruno Santos/ Folhapress)
Primeira edição da Marcha para Exu na avenida Paulista, em 2023. (Foto: Bruno Santos/ Folhapress)
 

Todo último sábado de maio, o terreiro Casa de Oiá, na periferia de Salvador, realiza uma cerimônia de entrega de presentes para a Iyalodê Oxum e suas yabás. No encontro mais recente, já no final de uma cerimônia que durou todo o dia, os integrantes do terreiro – homens, mulheres, crianças – compartilhavam alimentos, toques e cânticos na Ponta do Humaitá. Mas na edição deste ano havia uma novidade: ao lado do grupo, cerca de 15 pessoas usando camisetas pretas nas quais líamos a palavra “Ágape” formaram uma roda e começaram a entoar músicas evangélicas ao som de um violão.

 

Eu estava, a passeio, no local. Passei a observar aquela simultaneidade de expressões religiosas que poderia soar muito bonita se não fosse um detalhe: a óbvia tentativa do segundo grupo em constranger o primeiro. Os sinais eram evidentes: em uma área ampla e sem qualquer aglomeração, a decisão dos cristãos foi a de ficar bastante próximos aos candomblecistas, cantando de forma a confundir-se com o som dos atabaques e tambores próximos. O segundo sinal: no mesmo momento em que os integrantes da Casa de Oiá foram embora, o grupo evangélico também se desmobilizou e partiu.

Eu já sabia de diversos casos parecidos, alguns bem mais ruidosos, como o que ocorreu no quase centenário Terreiro de Xambá, em Olinda. Era dia do Toque de Obaluaiê quando os integrantes da casa se depararam com um grupo de cerca de 100 evangélicos da Assembleia de Deus em frente ao terreiro. Ali, com faixa, carro de som, microfone, faixa e instrumentos, tentaram armar um culto. Também já escrevi sobre o assédio de grupos neopentecostais aqui no Intercept.

Mas aquele pequeno show de superioridade moral e religiosa daquele grupo me fez ver como, fingindo que não estão cometendo racismo, uma fatia importante dos evangélicos avança e tenta tratorar, geralmente sem serem incomodados, parte da população brasileira. 

A realidade é que a presença ostensiva de grupos evangélicos em espaços públicos urbanos tem sido fortemente marcada por ações que extrapolam o proselitismo religioso para alcançar práticas de intimidação simbólica e material contra religiões afro-indígenas. 

Sucessora no cargo de ialorixá na casa, a jovem Geovana Santana, 18, acompanhou todo o lamentável movimento no dia da festa de Oxum. “Nunca tinha vivenciado aquele assédio por parte dos evangélicos. Acho extremamente desrespeitoso, contudo cumprimos nossa missão com muito amor e respeito aos nossos sagrados”, disse.

A boa notícia é que muita gente cansou dessa prática intimidatória e está partindo para o contra-ataque, ocupando os espaços públicos com fé, humor, amor e objetivo certeiro. São táticas importantes, uma vez que essas disputas não ocorrem em pé de igualdade, com as pessoas adeptas de religiões afro-brasileiras sendo penalizadas também pela própria estrutura estatal que deveria assegurar seus direitos.

Um dos nomes emergentes desse povo que faz política com coragem e festa é Alex Solarios, 21 anos, estudante de odontologia que vive em São Paulo.  Sua prática é simples e poderosa: dentro dos metrôs, ele começou a cantar pontos para Exu, o mais estigmatizado dos orixás. 

Alex é constantemente perseguido no plano virtual: chegou a ter a conta do Instagram desativada por racismo religioso. Mas segue levando a palavra da Umbanda. Foto: reprodução
 

Em um dos primeiros vídeos (que conta com mais de quatro milhões de visualizações no Tik Tok), ele substitui o nome “Jesus” por “Exu”, levando muitos ao espanto – ou ao riso. O conteúdo deu o que falar e mostrou que o assunto mobiliza muito adeptos – fazendo com que uma parte significativa inclusive perca o medo de se declarar “macumbeiro”,  termo usado de forma pejorativa e que vai recebendo outras camadas ao ser usado positivamente pelos praticantes das religiões afro-indígenas.

Alex prosseguiu mobilizando pessoas nas estações de metrô e procurando levar a palavra da Umbanda nas suas viagem do Uber

São atos que, sabemos, podem potencialmente colocar a integridade física do estudante em risco – até agora, disse Solarios nesta entrevista, “somente” vaias e xingamentos foram endereçados a ele. No plano virtual, a perseguição é constante: em janeiro deste ano, ele teve a conta do Instagram desativada, mas posteriormente recuperada. A razão: foi denunciado por… racismo religioso. É aquele papo de que o Brasil não é para amadores.

Outra frente que vem recebendo mais visibilidade também está atrelada ao orixá das Encruzilhadas: é a Marcha para Exu realizada na Avenida Paulista – um local bastante simbólico não só para pensar a concentração de renda e poder no país, para como palco de eventos políticos que deram força para a extrema-direita. A terceira edição do evento vai acontecer no dia 17 de agosto. Aqui, nesse vídeo do encontro no ano passado, dá para ver a multidão feliz da vida cantando pontos para Exu e Pombagira.

SÃO PAULO SP, BRASIL, 13.08.2023: MARCHA-EXU - Primeira edição da Marcha para Exu é realizada na avenida Paulista, região central da cidade, neste domingo (13). Evento, que homenageia uma figura central para religiões afrobrasileiras como umbanda e candomblé, quer afastar associação com diabo e mostrar 'Exu do amor'. (Foto: Bruno Santos/Folhapress)
Segundo organizador, Marcha para Exu tem feito com que muita gente passe a manifestar a própria fé sem medo. (Foto: Bruno Santos/Folhapress)
 

“Exu é o orixá mais discriminado, por isso fui direto na fonte. Para mim não  adiantava fazer uma marcha para Oxalá, Oxum… eles não são atacados como Exu, que não é o diabo, não é o capeta. Não fazemos maldade. Ano passado, arrecadamos 25 toneladas de alimentos na Marcha. Exu matou a fome de muita gente”, diz o empresário Jonathan Pires, 33 anos, idealizador do evento que, promete, este ano vai ser maior. 

Segundo ele, a celebração tem feito com que muita gente passe a manifestar a própria fé sem medo: o uso da guia, por exemplo, tornou-se um símbolo. “Quando sabemos do caso de empresas que discriminam funcionários, partimos para cima”, conta ele, que faz questão de destacar a “prosperidade do povo do axé” em sua fala, algo interessante quando lembramos que parte do discurso evangélico também se estrutura na mesma perspectiva. 

Dono de uma fábrica de parachoques e outra de artigos religiosos, ele diz que criou o evento para agradecer a Exu. “A religião me ajudou muito, não foi somente dormir tarde e acordar cedo. Tive muito acolhimento de orixá, preto velho. Mas quero mostrar que podemos ser prósperos, bater no peito e dizer ‘eu sou macumbeiro’”. 

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Infelizmente, a questão do espraiamento de outros eventos públicos relacionados ao orixá Exu tem sido alvo de contendas judiciais. O empresário inscreveu o nome “Marcha para Exu” no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e agora procura impedir via justiça que outras pessoas/organizações realizem as manifestações usando o mesmo nome. 

Algo bastante delicado, uma vez que esse cenário pode potencialmente prejudicar a própria ideia de “espalhar a palavra” do orixá e provocar uma corrida pela privatização do nome da entidade religiosa.

Há caminhadas dedicadas a Exu em uma série de cidades do país, como Manaus, no Amazonas, Belém no Pará, Recife em Pernambuco e nas cidades gaúchas de Arroio Grande e Cassino. E esse movimento, a despeito de rinhas judiciais, só tende (felizmente) a crescer. 

Essa popularização é importante uma vez que, com o recrudescimento da extrema direita e de toda uma lógica instagramizada de que as religiões cristãs são superiores, a intolerância explodiu no país: segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania via Disque 100, as denúncias aumentaram 80% em um ano (de 2023 para 2024). 

A estética é algo bastante central nessas mobilizações que são, assim como as das religiões cristãs, também pensadas para as redes sociais.

Assim, atos como as caminhadas realizadas por povos de terreiros em todo Brasil – em Recife uma acontece anualmente há quase 20 anos –, têm sido um lugar cada vez mais político.  Ao mesmo tempo, o último Censo religioso realizado pelo IBGE mostrou que o número de adeptos de religiões afro-brasileiras triplicou. O número é considerado, no entanto, maior, uma vez que muitas pessoas ainda têm receio de declarar uma fé não cristã.

É preciso dizer que estética é algo bastante central nessas mobilizações que são, assim como as das religiões cristãs, também pensadas para as redes sociais (e a questão da prosperidade citada por Jonathan tem relação com isso): nos dias das caminhadas pelo Brasil, o que vemos nas redes é uma quantidade expressiva de pessoas vestidas a caráter, usando vermelho e preto, flores e chapéus na cabeça, charutos e saias rodadas. 

Por isso vale lembrar que, já em 2016, o criador Cássio Bonfim organizou, em cidades como Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador, um desfile dedicado ao orixá da Comunicação, um sucesso que até hoje repercute em sua loja, a Acre: o Exu Motoboy (tem até fotinha do presidente Lula com o famoso boné). Foram diversas performances para confrontar uma intolerância mal disfarçada de zelo moral. 

Esse contra-ataque não é mera performance. Conto aqui, para terminar, uma história ocorrida em Campina Grande, na Paraíba, pode ilustrar bem: na cidade, durante mais de 25 anos e no período do Carnaval, aconteceu o encontro da Nova Consciência. Ali, centenas de pessoas de religiões variadas discutiam práticas meditativas, saúde, ecologia, filosofias orientais.

O fortalecimento do encontro fez com que grupos evangélicos passassem também a realizar cultos próximos aos eventos da Nova Consciência. Com apoio de prefeituras e empresários locais, os cristãos passaram a dominar cada vez mais o espaço público, enquanto a programação na NC seguia para espaços fechados. 

No período da pandemia, o encontro, é claro, passou a ser online. Mas nunca mais houve uma edição presencial. E hoje, em Campina Grande, acontece, no Parque do Povo, o encontro da Consciência Cristã.

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