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‘Eu poderia ser preso por essa entrevista’: palestino detalha cotidiano na Cisjordânia sob domínio de Israel

“Por uma entrevista como esta eles podem me levar para o juiz e dizer: ‘Ah, olha, ele conversou com um jornalista em São Paulo e falou mal da gente, deixa ele preso e dá três meses para ele e a gente vê se renova ou não’. Foi assim que Ahmed* explicou em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato a situação das prisões arbitrárias de cidadãos palestinos que vivem na Cisjordânia.

 

Para chegar ao Brasil, ele teve que sair dois dias antes de pegar o voo para cobrir uma distância de cerca de 60 km de distância. Isso porque, do vilarejo onde vive há apenas uma saída possível para a Jordânia e, ao percorrer as estradas, precisa desviar dos postos de controle (checkpoints) israelenses, que proliferaram no país desde o 7 de outubro de 2023, assim como o confisco de terras palestinas e a demolição de suas casas por parte dos militares de Israel.

Ahmed ressalta que a pressão do governo israelense sobre a população palestina se intensificou ainda mais após a trégua alcançada entre Israel e o grupo político-militar Hamas em janeiro deste ano. “Na Cisjordânia, de fato, a situação piorou, ficou muito pior depois da trégua. Isso porque a maioria dos prisioneiros palestinos foram libertados na Cisjordânia. Então os controles aumentaram porque eles tomaram a decisão de proibir qualquer sinal de comemoração pela libertação dos direitos dos palestinos.”

Leia a entrevista completa:

Brasil de Fato: Como você avalia a situação atual na Cisjordânia? O que mudou de 7 de outubro para cá?

Ahmed: As medidas da ocupação que afetam nossas vidas foram intensificadas de 7 de outubro até agora. Por exemplo, as demolições de casas aumentaram. O confisco de terras aumentou, o controle aumentou. Tudo o que existe agora já existia antes de 7 de outubro, mas a intensidade aumentou. Não tenho os números exatos, mas agora há cerca de mil postos de controle (checkpoints) e portões.

O posto de controle funciona com a presença de soldados israelenses. Os portões são fechados, e os soldados vão e deixam uma vila inteira, uma cidade, fechada. Então, bem, depois de 7 de outubro, os israelenses se sentem mais livres para cometer ataques contra os palestinos, se sentem mais livres para confiscar terras.

Israel anunciou a criação de 22 novos assentamentos na Cisjordânia, como isso impacta na situação dos palestinos?

O ministro das finanças israelense, [Bezalel] Smotrich, em retaliação aos países que reconhecem a Palestina, cria novos assentamentos e dá o nome do país que reconhece a Palestina [por deboche, esse ministro cria, por exemplo, um assentamento chamado África do Sul].

Você falou sobre 22 novos assentamentos, mas desde 7 de outubro há muito mais. Desde o retorno dos ataques este ano, após a trégua, uma pequena trégua, a situação se deteriorou muito nos últimos meses, ficou muito pior depois da trégua. Isso porque a maioria dos prisioneiros palestinos que foram libertados, foram libertados na Cisjordânia. Então os controles aumentaram, porque eles tomaram a decisão de proibir qualquer sinal de comemoração pela libertação dos direitos dos palestinos.

No dia em que a trégua começou em Gaza, eles implementaram um bloqueio muito mais intenso do que antes porque os prisioneiros já começaram a sair. Sabe como é, os palestinos adoram fazer festas para recebê-los. Eles tentaram fazer tudo o que podiam para proibir ou impedir as comemorações.

Um assentamento significa roubar mais terras, complicar mais a vida dos palestinos e diminuir a chance da solução de dois Estados, que praticamente não existe mais.

Você não acredita mais na solução de dois Estados?

Um Estado palestino e um Estado israelense. Acredito que essa seja a única solução política que está sobre a mesa e que, com base nessa solução, todos reconheçam a Palestina, mas, na realidade, não sei até que ponto ela é viável, apesar de todo o apoio à Palestina que tem crescido ultimamente, porque isso é para acabar com a guerra. Mas a questão da solução de dois estados, hoje estamos falando de mais de 800 mil colonos israelenses na Cisjordânia.

Se eles não conseguem parar uma guerra como a de Gaza, como podem tirar 800 mil colonos da Cisjordânia? Se eles não conseguem levar água para Gaza, como vão tirar a água de lá? O ministro da Segurança Nacional, Ben Fir, já armou mais de 300 mil desses colonos na Cisjordânia. Portanto, estamos falando de um exército de colonos. Eles são paramilitares, todos eles. Vivemos cercados por assentamentos, e os próprios moradores desses assentamentos estão armados. Eles agem como um exército. Eles entram nos vilarejos, fecham-nos, roubam, e o exército não tem vontade e nem poder para detê-los.

O que mudou na sua vida cotidiana desde o 7 de outubro?

Vivemos na parte central da Cisjordânia, em vilarejos cercados por assentamentos. Eles colocaram os assentamentos de forma a cortar a conectividade entre os vilarejos palestinos. Somos cerca de 4 mil habitantes que têm apenas um acesso, uma saída, a mesma, um portão e um posto militar tão pequeno, que apenas três soldados estão lá. Mas esses três soldados, em um minuto, fecham e bloqueiam 4 mil pessoas. A população dos vilarejos trabalha na cidade e usa estradas para se locomover. A estrada que liga meu vilarejo à cidade tem cerca de 12 quilômetros, mas passa por diversos assentamentos. Estamos percorrendo 30 quilômetros, mais que o dobro, para dar a volta e não cruzar com os assentamentos, porque eles estão separando as estradas que conectam os assentamentos.

Eles inventam estradas para os palestinos, que praticamente passam de um vilarejo para outro e, na maioria dos casos, não temos acesso às estradas centrais que não passam por dentro dos vilarejos. Isso complica a vida. Nós somos empregados, trabalhadores. Outros são, por exemplo, comerciantes que precisam transportar mercadorias ou fazendeiros. Isso tornou a vida muito complicada para eles. Muito mais depois de 7 de outubro, e pior ainda depois da última trégua em janeiro de 2025.

No futuro, se essa situação permanecer, você planeja mudar de país? Que opções você tem?

Falando por mim, não tenho planos de mudar de país. Com a situação atual e na medida em que se pode resistir, é preciso ficar lá. Mas há casos de muitas e muitas famílias que tomaram a decisão de deixar o país ou de se mudar de um lugar para outro quando é possível, porque não têm escolha. Eles chegam, decidem que aquela área é perigosa, seja o que for, e nós vamos destruir, demolir todas as casas, e você fica sem casa da noite para o dia.

Isso aumentou muito depois de 7 de outubro, as punições coletivas de demolição de casas, edifícios inteiros, por estarem perto de um assentamento, perto da estrada para um assentamento, sabendo que, em muitos casos, eles dizem que essas estruturas ou esses edifícios não têm licença. Mas eles não dão licenças aos palestinos, então as pessoas tendem naturalmente a construir mesmo que não tenham licença, porque é onde vão morar, e muitos perderam todo seu esforço próprio, ninguém construiu a casa de graça, ninguém lhes deu a casa, é uma casa que eles construíram com muito esforço.

No nosso caso, somos empregados, mas há outros na minha região que dependem da agricultura, que não têm licença. Eles ficaram sem fontes de água. Na agricultura, eles não têm mais acesso à maior parte da terra. A oliveira é muito importante, mas ninguém pode viver apenas da oliveira. Para depender apenas da oliveira, é preciso ter muita terra, o que, na maioria dos casos, não está mais disponível. Teoricamente, todos os palestinos possuem terra, mas praticamente ninguém tem escritura.

Além da oliva, que outras culturas alimentares são importantes?

Depende da região. Na região central da Jordânia, a oliveira é a melhor cultura, a mais comum. As uvas também, falando de frutas. As plantações sazonais não são mais muito importantes por causa da falta de água. Na temporada de inverno, há mais, mas há variáveis: tomate, pepino, mas a área central, em geral, não é a mais adequada para esse tipo de cultura.

Ao norte da Cisjordânia, há vegetais e frutas de todos os tipos, até mesmo tropicais estão sendo cultivados no norte, mas com grande dificuldade devido à falta de água. Israel controla 85% da água na Cisjordânia. Há um consumo médio de seis vezes mais por colonos em comparação com cada cidadão palestino.

Cada israelense tem direito a seis vezes mais água. Bem, como eu disse, o mais complicado é se locomover, não há conectividade. Entre uma cidade e outra, que fica a 40 quilômetros, 45 quilômetros, você pode levar um dia e talvez não consiga chegar lá. Essa é a coisa mais complicada para todos os tipos de profissões, seja dos empresários ou dos empregados.

Como foi vir para o Brasil, quais as principais dificuldades para deixar a Cisjordânia?

Só temos acesso da Cisjordânia à Jordânia. E do aeroporto na Jordânia você pode sair. Esse acesso fica em uma cidade chamada Jericó, perto do Mar Morto. Portanto, é uma cidade pequena que tem apenas duas entradas e há assentamentos. Por isso, muitas vezes é fechado e aberto, e a própria passagem de fronteira muda o horário de funcionamento. Agora, o horário de funcionamento é bem reduzido, apenas das 8h às 16h, quatro dias por semana, um dia até às 12h e fecha um dia. Não conheço nenhuma outra fronteira no mundo que seja fechada e tenha horário de funcionamento.

Você vai daqui para qualquer país, a qualquer hora, e atravessa. E então você sempre leva em consideração sair dois dias antes para viajar. Por exemplo, se eu tiver meu voo no dia tal e tal, tenho que sair dois dias antes para ter certeza de que chegarei à Jordânia antes de perder meu voo.

E na volta também, dois dias antes da data em que deveria estar na Palestina por causa do mesmo problema. Eles podem fechar a qualquer momento.

Como estão as prisões de palestinos na Cisjordânia?

De 7 de outubro até agora, acho que há mais de 12 mil detidos. Esse é um número muito alto. É a primeira vez que, por qualquer motivo, não sei o número exato, mas acho que um terço são detentos administrativos. Ou seja, você entra e sai, não é acusado, não pode se defender, apenas o chefe de segurança convence o juiz, diretamente entre os dois, de que fulano representa um perigo ou está causando um incômodo. Então você recebe uma sentença de três meses. Ela pode ser renovada a cada três meses. E há pessoas que estão lá há cinco anos sem ter nenhuma acusação contra elas.

Por uma entrevista como esta eles podem me levar para o juiz e dizer: “Ah, olha, ele falou com um jornalista em São Paulo e falou mal da gente, deixa ele preso e dá três meses para ele, e a gente vê se renova ou não”. Isso para que eu não tenha como me defender, porque eles me prenderam porque falei com um jornalista no Brasil. Então eles encerram o caso, e há mais de 3 ou 4 mil prisioneiros palestinos sem acusações nas prisões israelenses. Sem contar os que estão em Gaza, é claro que não há informações. Nem mesmo a Cruz Vermelha tem dados precisos. Não se sabe muito sobre isso. Recentemente, foi revelado que uma prisão subterrânea que estava fechada desde 1991 foi reaberta para os prisioneiros de Gaza.

Essa situação contrasta com a impunidade dos colonos israelenses…

Acho que estamos em uma situação em que há 800 mil colonos na Cisjordânia, e a maioria deles tem dupla nacionalidade. Eles estão cometendo crimes em todos os sentidos da palavra, diariamente. E até que seus países, a segunda nacionalidade que eles têm, não os coloquem diante dos atos que estão cometendo, não vai mudar nada.

Eles acham que está tudo bem com o que fazem porque nada está acontecendo. Estão roubando a terra e retornam para os Estados Unidos, para a França, e seus governos não dizem nada. Portanto, não há problema em fazer isso. Mas não se pode admitir que um judeu ou um sionista tente tomar terras de brasileiros.

Portanto, acho que o mais importante é que todos comecem a ver que, se você é cidadão de qualquer país, esse país é responsável pelo que você faz em seu país e fora dele.

*Ahmed é um nome fictício, adotado por motivos de segurança a pedido da fonte

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