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Eldorado do Sul abre portas para projeto bilionário de data center que esconde impactos e ignora população

 
  • Poucos meses depois da enchente que assolou Eldorado do Sul, Scala AI anuncia mega investimento de R$ 3 bilhões em data center na cidade. O projeto foi apelidado de ‘AI City’. 
  • Mesmo sem nenhum relatório mostrando os benefícios e impactos, a Câmara de Vereadores aprovou uma lei que cria facilidades no licenciamento da obra e estabelece prioridade na execução da política econômica do município.
  • Apesar da promessa, moradores da cidade e vizinhos ao empreendimento, no entanto, sequer estão sabendo da empreitada – e até hoje sofrem as consequências das inundações, muito longe das promessas de desenvolvimento. 
  • O data center será instalado em uma área equivalente a mais de 540 campos de futebol às margens da BR-290, comprada por R$ 38 milhões. Por ser um local mais alto, o terreno ficou à salvo das inundações.

Maria Nelly Andersen aponta na parede a série de rachaduras e o sinal amarronzado que marca a altura atingida pela água ao engolir sua casa em Eldorado do Sul na enchente histórica no Rio Grande do Sul, em maio de 2024. Um ano depois, ainda tentando salvar sua moradia do desabamento, ela foi surpreendida quando perguntamos sobre o mega data center que será construído na cidade. “Isso aí é o quê? Ajuda para não vir mais a enchente?”, perguntou.

 

Não só não ajuda como traz mais um risco de problemas ambientais para Eldorado do Sul, uma das cidades mais castigadas pela enchente, em que mais de 80% das casas ficaram debaixo d’água e cerca de 30 mil pessoas foram desalojadas. 

É que o data center, uma enorme construção com computadores poderosos que funcionam 24 horas por dia para processar tudo que é feito na internet, usa muita energia e água para esfriar os supercomputadores. E o que está previsto em Eldorado do Sul é tão grande que foi apelidado de AI City, ou Cidade da IA.

O Brasil, por ter uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, tem sido muito cobiçado por grandes empresas para a instalação desses mega empreendimentos e até acenado com incentivos fiscais para que isso ocorra. 

Mas, seduzido por uma promessa de ganho econômico sem clareza e estudos técnicos, o governo federal tem ignorado os riscos ambientais desses projetos, inclusive escanteando o Ministério do Meio Ambiente da elaboração da política nacional de data centers. 

O mega data center prestes a sair do papel em Eldorado do Sul tem desdobramentos que vão além do meio ambiente. Maria e muitos moradores também não sabem que o projeto bilionário será feito em uma área mais alta da cidade e sem risco de alagamento. 

Tudo graças a uma estratégia arquitetada durante a recuperação da enchente que combina flexibilização em leis, nenhuma consulta pública à população e total falta de transparência sobre os estudos de impacto econômico, social e ambiental do empreendimento no município.

A promessa de gerar emprego e renda depois da destruição da cidade tem unido a prefeitura e o governo do estado do Rio Grande do Sul desde setembro de 2024 em torno do projeto, que é liderado pela empresa brasileira Scala Data Centers e tem investimento inicial calculado em R$ 3 bilhões.

A promessa de gerar emprego e renda depois da destruição da cidade tem unido a prefeitura e o governo do estado do Rio Grande do Sul.

Mas chama atenção que, diante de algo propagado como positivo, ninguém da administração municipal queira falar sobre o assunto. O  Intercept esteve em Eldorado do Sul e solicitou entrevistas à prefeitura, mas um assessor de comunicação disse que a gestão “não tinha interesse”, sem mais explicações.

Enquanto isso, mesmo sem nenhum estudo ou relatório mostrando os benefícios e impactos do data center ter vindo a público, a Câmara de Vereadores aprovou, em dezembro de 2024, uma lei de iniciativa do executivo municipal que viabiliza a construção do data center, cria uma série de facilidades no licenciamento da obra e estabelece que a implantação do chamado “polo tecnológico” terá prioridade na execução da política econômica do município.

Também questionamos o governo estadual sobre estudos dos impactos e riscos do projeto. Por meio da Lei de Acesso à Informação, ainda pedimos a íntegra de levantamentos, relatórios de impacto ambiental e notas técnicas relacionadas à obra. A resposta da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do governo Eduardo Leite foi de que o projeto ainda está em andamento e não há mais informações no momento.

Enquanto isso, Maria Nelly ainda está esperando o dinheiro que deve receber do governo federal para comprar uma casa em outro lugar. Nessa espera, ela diz já ter perdido várias oportunidades de compra. Nós perguntamos se ela quer mesmo sair de Eldorado do Sul. “Eu queria até ficar, mas só que nós não temos chance”, diz, apontando para a marca da água na parede.

Maria Nelly está à espera do dinheiro do Governo Federal para comprar uma casa em outro lugar. Foto: Alass Derivas/Intercept Brasil.
 

‘Tu acha que a população irá trabalhar no data center? Negativo’

A Scala Data Centers anunciou o projeto bilionário em Eldorado Sul cinco meses após a cidade ter sido devastada pela enchente. Na época, o investimento inicial de R$ 3 bilhões foi comunicado com um tom de esperança de dias melhores em meio à desgraça ambiental enfrentada pela população. 

O governador Eduardo Leite, do PSD, disse que o anúncio posicionava o RS “de maneira ainda mais estratégica aos olhos das grandes empresas de tecnologia no mundo”.

Apesar de se vender como uma empresa brasileira, a Scala é uma empreitada estrangeira. A companhia foi fundada em 2020, depois que o fundo norte-americano Digital Colony comprou os data centers da operação de TI do Grupo Uol, a Uol Diveo. De largada, a Scala teve um investimento de US$ 400 milhões, segundo informações da própria empresa

Em Eldorado do Sul, o projeto inicial tem capacidade prevista de 54 megawatts. Mas a ideia é que todo o complexo atinja capacidade de 4.750 MW. Em entrevista ao jornal Zero Hora, Eduardo Leite anunciou orgulhoso que essa cifra equivale ao consumo de energia de todo o estado do Rio de Janeiro. 

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Terreno que vai receber o empreendimento tem uma área equivalente a mais de 540 campos de futebol, às margens da BR-290. Foto: Alass Derivas/Intercept Brasil.
 

Foi em setembro de 2024 que a Scala comprou o terreno que vai receber o empreendimento: uma área de 3,5 milhões de metros quadrados, equivalente a mais de 540 campos de futebol, às margens da BR-290, no entroncamento com a RS-401. Por ser um local mais alto, o terreno ficou à salvo das inundações que ocorreram no município em maio de 2024. 

Segundo a escritura obtida pelo Intercept no registro de imóveis da cidade, a área pertencia a uma empresa agropecuária, custou R$ 38 milhões e abrigava, até pouco tempo atrás, uma plantação de eucaliptos. Quando visitamos o local, no início de maio, o terreno havia sido limpo e caminhões carregados com madeira estavam deixando o local. 

Anúncios já feitos pela Scala e pelo governo de Eduardo Leite projetam um investimento na ordem de R$ 500 bilhões se o projeto atingir sua capacidade máxima. O número impressiona, mas um olhar mais minucioso revela que pouco ficará para a sociedade, já que cerca de 60% dos investimentos anunciados para projetos de data center correspondem à compra de equipamentos cruciais – e caríssimos – como chips e GPUs, segundo um estudo da Agência Brasileira de Desenvolvimento, a Abdi, encomendado pelo governo federal e publicado em 2023. 

Vale destacar que data centers não são grandes fontes de arrecadação para municípios e estados, especialmente quando se considera o contexto brasileiro. Uma das razões para isso é que a política nacional de data centers, prestes a ser apresentada pelo governo Lula, se baseia principalmente em isenções fiscais e desonerações. Na prática, isso significa que o poder público abre mão de receber impostos e tributos dessas empresas para que o Brasil se torne um destino mais atrativo de investimentos. 

Data centers não são grandes fontes de arrecadação para municípios e estados, especialmente quando se considera o contexto brasileiro.

Mas, para empresas do segmento de data centers, abrir mão dos impostos federais não “resolve todo o problema”, como disse o próprio fundador e CEO da Scala, Marcos Peigo, durante um evento no fim de maio. O apelo é para que também haja uma diminuição nos impostos estaduais. 

Nos Estados Unidos, onde os mega data centers já são uma realidade, essas isenções fiscais estão custando caro aos estados. Um relatório da Good Jobs First, uma organização sem fins lucrativos que monitora subsídios dados a empresas nos EUA, mostrou que ao menos 10 estados norte-americanos já perdem mais de US$ 100 milhões por ano em arrecadação para data centers. 

Segundo anúncios públicos do governo estadual e da Scala, a projeção é que o mega data center de Eldorado do Sul criará 3 mil empregos diretos e indiretos na primeira fase. Mas o que não é dito é que, embora a construção de data centers exija contratação de mão de obra, depois de prontos essas infraestruturas não demandam muitas pessoas na operação. 

O data center da Stargate, um projeto do governo dos Estados Unidos em parceria com as maiores empresas do setor de inteligência artificial, no Texas, é um exemplo disso. Atualmente, 1,5 mil pessoas estão trabalhando na construção, mas apenas 100 trabalharão no local depois que ele estiver pronto, segundo dados da agência de desenvolvimento econômico local obtidos pelo Wall Street Journal.

No caso de Eldorado do Sul, esse detalhamento não é conhecido publicamente porque empresa, prefeitura e governo do estado não respondem nem mesmo se existem estudos sobre isso.

Agroecologista, produtor de arroz orgânico no assentamento Integração Gaúcha e ex-vereador pelo PT em Eldorado do Sul, João Cardozo, conhecido como Tigre, não se ilude quanto à promessa de empregos. “Tu acha que a população irá trabalhar no data center? Negativo. Quantos trabalham hoje na Dell? Grande parte da população não tem estudo superior, não tem curso técnico para isso”, disse ele ao Intercept, durante uma entrevista em seu sítio. 

“Vai trazer mais emprego? Pode trazer mais 10, 100 ou 1 mil empregos. Mas o data center trazendo empregos, vai parar de dar enchente? As pessoas vão parar de perder? Isso resolve? Não resolve”, afirma. 

 

Na zona rural, a preocupação sobre a possível ‘cidade da IA’ já existe. É que o município tem muitas plantações de arroz orgânico e outras culturas, principalmente em assentamentos da reforma agrária. Somando arroz orgânico e não-orgânico, o Rio Grande do Sul produz 70% do total colhido no Brasil, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento, a Conab.

O ex-vereador Tigre diz que não há clareza sobre de onde será retirada a água que resfriará os computadores do data center — e o temor é de que isso afete especialmente o cultivo de arroz, que exige bastante água. Ele ainda afirma que toda a água para a produção agrícola e consumo da população vem dos rios Jacuí e Guaíba.

“Eldorado do Sul, Guaíba, Porto Alegre e região sobrevivem dos rios. Então, certamente [a água para o data center] virá dos rios ou por grandes poços artesianos. É isso que a gente quer saber também, pois falta clareza de onde virá a água e quanta água irá gastar”, afirma.

Na avaliação dele, justificar a construção do data center apenas na geração de empregos e ignorar outros impactos desinforma a população. “A população compra a ideia por causa do emprego. Acha que vai ganhar mais e poder trabalhar lá. Mas ninguém falou como isso vai afetar a energia elétrica, já que a empresa gasta bastante energia, por exemplo. Ninguém falou nada. Qual é o estudo que aponta isso? Não sabemos”, pondera.

Indígenas vizinhos à bilionária ‘cidade da IA’ seguem desalojados

A apenas três quilômetros do terreno onde será construído o data center, às margens da RS-401, em um acampamento improvisado, vivem os indígenas que sobraram da aldeia Tekoa Pekuruty, do povo Mbyá-Guarani. 

Em maio de 2024, cerca de 40 moradores deixaram a aldeia às pressas depois de serem acordados pela água, que subia rapidamente e fez com que a estrada cedesse. Na época, sem nenhum aviso, o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes, o DNIT, destruiu a aldeia com tratores e máquinas. 

Indígenas que sobraram da aldeia Tekoa Pekuruty, do povo Mbyá-Guarani, vivem em acampamento improvisado após as enchentes de 2024. Foto: Alass Derivas/Intercept Brasil.
 

“Eu perdi tudo, perdi semente do avati [milho em tupi-guarani]. Só que não foi enchente que levou tudo, não foi água que levou. Foi o DNIT que destruiu tudo, eu vi embaixo da terra, enterrou tudo”, disse ao Intercept Laura, esposa do cacique Estevão. “Depois o DNIT prometeu pagar e até hoje não pagou nós ainda”. 

Há décadas, os mbyá-guarani reivindicam a demarcação do território, mas o local é alvo de uma disputa que se arrasta desde 2013 em torno da duplicação da BR-290, rodovia que corta o RS de leste a oeste. 

Em contraste com a celeridade na implantação do data center vizinho, os indígenas esperam desde 2018 a compra de uma área de 300 hectares para realocar a aldeia, prevista no plano ambiental da obra. Mas até o início deste ano, nada havia acontecido. Foi só em janeiro de 2025 que a Justiça Federal determinou que o Dnit compre a terra e a construa casas e escolas. 

Quando visitamos os moradores da Pekuruty, eles logo comentaram sobre a expectativa de retomar a sua aldeia, mas não faziam ideia de que um mega data center será construído perto de onde vivem. 

Os guarani também contam que não foram consultados – e sequer foram avisados – sobre a chegada do empreendimento  à cercania da aldeia. A falta de consulta viola a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT, da qual o Brasil é signatário.

“Ninguém foi informado, ninguém sabe do que está se falando. Esse povo está ali há décadas esperando um aceno por parte do governo, e infelizmente continuam sendo tratados de uma forma invisibilizada”, me disse Artemio Soares, ativista indígena e professor que dá aulas na Pekuruty e em outras aldeias da região.

Os guarani também contam que não foram consultados – e sequer foram avisados – sobre a chegada do empreendimento  à cercania da aldeia.

No início de maio, a coordenação regional sul do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, acionou o Ministério Público Federal, MPF, e a Defensoria Pública da União para que fossem tomadas medidas para obter mais informações sobre o projeto da Scala. Também alertou para o potencial impacto ambiental e a falta de consulta às comunidades indígenas da região.

No dia 8 do mês passado, o MPF, após tomar conhecimento do caso por meio do requerimento, pediu informações detalhadas sobre o projeto para a Secretaria de Meio Ambiente, a Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia e a Casa Civil do governo do estado. 

Moradores vivem expectativa de retomar a sua aldeia, mas não fazem ideia de que um mega data center será construído no local. Foto: Alass Derivas/Intercept Brasil.
 

Segundo o MPF, a Sedec informou que há um protocolo de intenções com a Scala, que é considerado não vinculativo, e que não houve até o momento pedido formal de licenciamento ambiental junto à Fepam ou ao Ibama. A secretaria disse ainda que a definição sobre a competência do licenciamento depende da caracterização do empreendimento, mas que o processo de licenciamento ambiental “implicará a necessidade de consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas”. 

O MP estadual também acompanha o caso desde fevereiro, quando oficiou a Scala a informar a etapa atual do projeto e a apresentar estudos de impacto ambiental e vizinhança. Em março, a Scala respondeu, informando que havia adquirido terras no município, mas que ainda não havia iniciado a implementação do projeto, razão pela qual ainda não havia sido apresentado nenhum ato ou projeto para deliberação pelo poder público. 

‘Cadê o estudo para mostrar que ele é viável de ser instalado ali?’ 

Eldorado do Sul ainda tenta retomar o ritmo antes da enchente de 2024. Muitas casas seguem fechadas e foram abandonadas por moradores que não podem se dar ao luxo de perder tudo mais uma vez. Inúmeros imóveis ainda têm a marca da água nas paredes. 

Alguns bairros, como o Cidade Verde, onde vive Maria Nelly Andersen, estão esvaziados porque seus moradores desistiram de tentar a vida em Eldorado do Sul e escolheram recomeçar em outro lugar. 

Mas, enquanto isso, até uma lei foi criada em Eldorado do Sul especificamente para atender as demandas da Scala para instalar o data center.  

Aprovada em dezembro de 2024, a proposta ampliou o perímetro urbano do município Sul para acomodar o empreendimento e fez uma série de flexibilizações e simplificações aos processos de licenciamento. 

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Cidade está se baseando somente na avaliação feita pela própria empresa, incluindo a análise sobre potenciais riscos ambientais. Foto: Alass Derivas/Intercept Brasil.
 

A norma prevê, por exemplo, que diferentes tipos de licenciamento podem ser feitos ao mesmo tempo. Também libera o licenciamento auto-declaratório, um instrumento que visa dar celeridade aos processos de construção – mas acaba se baseando somente na avaliação feita pela própria empresa, por meio do responsável técnico do projeto, o que inclui a análise sobre potenciais riscos ambientais. 

Especialistas ouvidas pelo Intercept apontaram problemas na legislação. Para Geisa Rorato, professora do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS, chama atenção que a lei aprovada já traz o nome da Scala, como se fosse uma norma encomendada sob medida para a empresa. 

Ela ainda destaca a falta de discussão pública e transparência sobre as decisões, além de alertar para a ausência de estudos de impacto e de entendimento sobre os potenciais efeitos que serão causados pelo data center. 

“Cadê o estudo para mostrar que ele é viável de ser instalado ali? Para fazer o licenciamento ambiental, a gente tem que ter estudos de impacto, EIA-RIMA. Se a gente tem um plano diretor bom, ele deve exigir um estudo de impacto de vizinhança para identificar os impactos que esse empreendimento vai ter e eventualmente cobrar do empreendedor que ele faça alguma coisa em relação a isso”, pontua Rorato.

Para ela, a ordem parece estar invertida: primeiro houve a definição de instalação, depois houve a alteração da lei e só então haverá estudos de impacto. 

Essa flexibilização do poder público às empresas em detrimento dos impactos, principalmente ambientais, já vem ocorrendo em nível estadual desde o primeiro mandato do governador Eduardo Leite. Em 2019, Leite fez uma reforma no Código Ambiental do estado, eliminando quase 500 pontos. 

Uma das alterações foi a criação de um instrumento que prevê o autolicenciamento, em que o interessado pode emitir sua licença sem análise prévia dos órgãos ambientais. 

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“O estado sai de cena e deixa que o empreendimento, o arquiteto ou a construtora tome a decisão se é ou não adequado aquele empreendimento, naquela localidade, e com as condições ambientais e sociais com as quais esse empreendimento vai ter que conviver”, observa Heleniza Campos, professora do Departamento de Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Faculdade de Arquitetura da UFRGS.

“Essa ausência do estado é perigosa, porque obviamente o empreendedor vai querer utilizar o máximo possível desse ambiente”, acrescenta a especialista. 

Para Rorato, é crucial que haja mais articulação entre as esferas municipais e estaduais para dar conta de desafios como esse. Até porque, segundo ela, em regiões metropolitanas, como é o caso de Eldorado do Sul, só o plano diretor de um município é insuficiente frente aos impactos de um empreendimento dessa magnitude. 

“Quando a gente tem atividades que são muito impactantes que não se limitam ao município, isso tem que ser pensado numa escala maior”, afirma a professora. 

Para Campos, também da UFRGS, o projeto de data center em Eldorado do Sul devia inclusive ser do interesse de outros estados, já que o empreendimento está localizado sobre o aquífero Guarani, uma bacia hidrográfica já bastante comprometida que atravessa oito estados brasileiros e parte da Argentina e do Paraguai. 

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A área comprada para receber o data center pertencia a uma empresa agropecuária, custou R$ 38 milhões e abrigava uma plantação de eucaliptos. Foto: Alass Derivas/Intercept Brasil.
 

O caso da mina

A sensação de desconhecimento sobre um projeto de grande porte e as incertezas em relação aos impactos não é novidade para os moradores de Eldorado do Sul. Pouco mais de dez anos atrás, algo parecido mobilizou a comunidade: o processo da Mina Guaíba.

Em 2014, a mineradora Copelmi buscava autorização para instalar o que seria a maior lavra de carvão a céu aberto do Brasil em uma área de 5 mil hectares entre os municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas. O projeto, que previa um investimento bilionário de chineses e estadunidenses, projetava extrair 166 milhões de toneladas de carvão ao longo de 26 anos de operação.

Em 2022, a Justiça Federal determinou a anulação do processo de licenciamento ambiental do projeto, atendendo a uma ação civil pública protocolada por entidades de defesa indígena que alegaram que as comunidades que habitam esse território não foram consultadas – o mesmo problema que o Cimi denuncia agora.

À época, houve uma articulação em várias frentes por diversos órgãos da sociedade civil e ativistas para exigir mais informações da empresa e maior participação no processo de licenciamento. Uma das exigências foi que fossem realizadas audiências públicas. O ex-vereador Tigre relata que, na ocasião, foi preciso buscar a justiça para obter anexos com informações técnicas sobre o projeto.

Em fevereiro de 2025, a Copelmi oficialmente desistiu do projeto. Caso a proposta não tivesse sido barrada, a mina poderia ter aumentado a proporção da catástrofe com a enchente de 2024. 

“A enchente do ano passado teria rompido essa essa cava e poluído toda essa região com metais pesados, com uma série de outras substâncias”, disse ao Intercept Emiliano Maldonado, advogado e professor da Faculdade de Direito da UFRGS e integrante da coordenação do Comitê de Combate à Megamineração, uma das organizações que atuou no processo contra a mina Guaíba e que hoje reúne 100 entidades.

Agroecologista João Cardozo, conhecido como Tigre, não se ilude quanto à promessa de empregos. Foto: Alass Derivas/Intercept Brasil.
 

Ele lembra que, assim como ocorreu em dezembro para abrir as portas para o data center da Scala, houve uma alteração no plano diretor de Eldorado do Sul durante o processo para a então planejada efetivação da mina Guaíba. À época, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu em uma ação direta de inconstitucionalidade que essa mudança violou o direito à consulta e informação da população. 

Para Maldonado e outros com quem conversamos, a prioridade agora deve ser garantir o acesso a informações sobre o projeto do data center. “Até hoje não temos informações claras sobre esse projeto, e esse é um direito básico para que a gente possa avaliar adequadamente e, inclusive, apontar possíveis danos, nulidades, questões que precisam ser tomadas em conta pelo poder público e pelos licenciadores desse tipo de grande obra.”

Para Tigre, as audiências públicas serão chaves para que a população seja informada e possa questionar. “Espero que os poderes legislativo e executivo, municipal e estadual, abram espaço para que os donos e diretores dessas empresas venham conversar com a população, ouvir as contradições e esclarecer o que é um data center, o que vem trazer de bom para cidade e o que pode ser prejudicial”.

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