“Conciliar o inconciliável”, denunciavam os indígenas em agosto de 2024, após a instituição da Câmara de Conciliação sobre o marco temporal, determinada pelo ministro Gilmar Mendes. O magistrado é relator de cinco ações que questionam a constitucionalidade da Lei 14.701, conhecida como Lei do Marco Temporal, aprovada em dezembro de 2023 pelo Congresso Nacional.
A sessão final, nesta terça-feira (23), foi esvaziada. De um lado da bancada, servidores da Advocacia-Geral da União (AGU), da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). O trabalho deles foi fazer o possível para garantir que os direitos constitucionais dos povos indígenas fossem preservados e garantir que a atualização do rito demarcatório de terras indígenas não permitisse que o processo ganhasse novos obstáculos. “Nosso objetivo é demarcar”, disse uma representante da Funai ao Brasil de Fato.
Do outro lado, advogados dos partidos Republicanos, Partido Liberal (PL) e Progressistas, além de representantes da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), que são autores de uma das ações, a única que pede que o Supremo declare a constitucionalidade da lei aprovada em 2023. Esses atuaram no sentido contrário, buscando criar restrições nos processos demarcatórios, uma vez que o STF deve reafirmar que a regra do marco temporal é inconstitucional.
E os indígenas? Esses não viram importância em sentar-se à mesa na última sessão da tentativa de conciliação, que envolveu a negociação sobre seus direitos. No final da sessão, o juiz auxiliar do gabinete de Mendes, Diego Veras, afirmou que não sabia o que o ministro faria com os resultados obtidos nos dez meses de trabalhos daquela comissão. “Mas então o que viemos fazer aqui?”, questionou a advogada representante do Congresso Nacional, Gabrielle Tatith, fora do microfone, em deferência ao coordenador dos trabalhos.
Para o advogado indígena Maurício Terena, a ausência de consensos, e uma finalização esvaziada e com ritmo de “exaustão”, é a demonstração de como pessoas brancas, não indígenas, seguem negociando os direitos dos povos originários do Brasil.
“Essa finalização nos coloca uma reflexão sobre o cenário democrático que a gente está vivendo. Porque inclusive no final do debate, eles falavam sobre um debate democrático, um debate democrático onde os brancos, a elite negociou os direitos de um grupo subalternizado. Percebe-se que a noção de democracia para as pessoas não indígenas, brancas, que estão no poder, são completamente distorcidas”, critica Terena.
“Tinha uma estratégia clara, perversa, de negociar à força os direitos indígenas. E todos que participaram, todos que se mantiveram no feito conciliatório corroboraram para que, em alguma medida, independentemente do resultado que saia, deixassem suas digitais esse processo”, completa o advogado.
Terena critica ainda as mudanças sobre as quais se chegou a consenso, como a alteração no regime jurídico das terras indígenas, assim como no rito demarcatório. “É um consenso, inclusive, por parte da União, reformar o procedimento de demarcação das terras indígenas, tornando ele inviável, criando novas fases. Além disso, tem a questão do regime jurídico das terras indígenas, que são deslocadas para o direito civil em caso de posse privada. Não foi essa a vontade do constituinte”, avalia o advogado.
Mas para entender melhor, é preciso voltar no tempo um pouco mais que os dez meses das últimas tentativas de conciliação sobre um conflito que remonta os 525 anos de colonização e despojo dos povos indígenas do Brasil.
A tese
A tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas defende que somente as áreas ocupadas por povos originários até a data de promulgação da Constituição Federal – 5 de outubro de 1988 – poderiam ser demarcadas pelo Estado brasileiro. A regra é fortemente defendida por ruralistas e empresários do agronegócio, representados no Congresso Nacional pela maior de todas as bancadas, a bancada ruralista.
Por sua vez, os indígenas argumentam que a promulgação da Constituição Cidadã foi um marco na instituição de direitos e que, justamente a partir dela, comunidades indígenas deslocadas ao longo da história puderam realizar processos de retomada, forçando o Estado a cumprir o direito constitucional à demarcação.


Para o STF, é inconstitucional
Em 21 de setembro de 2023, por 9 a 3, o STF firmou entendimento de que a tese do marco temporal é inconstitucional, no julgamento do chamado “Tema 1031”. À época, o ministro Gilmar Mendes votou com a maioria, mas destacou em seu voto que o processo demarcatório deveria “assegurar a indenização aos ocupantes de boa-fé, inclusive quanto à terra nua”.
Terra nua é o nome que se dá à área de um determinado imóvel rural que não recebeu nenhum investimento para que pudesse cumprir com outra regra constitucional, que é a função social da terra, ou seja, não possui nenhum tipo de intervenção que permita atividade rural, como plantações ou pecuária.
Esse tipo de indenização é criticada pelas organizações indígenas. Por um lado, porque consideram a “propriedade” de uma terra pela qual, muitas vezes, o proprietário sequer pagou, premiando, em alguns casos, a grilagem. Por outro, os indígenas afirmam que o aumento de previsões indenizatórias pode dificultar as demarcações de terras em razão de dificuldades orçamentárias.
Congresso ignora decisão do STF
Em afronta à decisão do Supremo, em dezembro de 2023, apenas três meses após o julgamento do Tema 1031, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701, que em seu Artigo 4º, parágrafo 2º, define terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros apenas aquelas ocupadas até 5 de outubro de 1988.
Um dos argumentos utilizados pelos parlamentares para justificar a contrariedade da decisão do STF foi de que ainda não haviam sido julgados os embargos de declaração, ou seja, os recursos apresentados à decisão do Supremo em relação ao Tema 1030.
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, vetou mais de 30 dispositivos da lei aprovada, entre eles o que estabelecia a regra do marco temporal. Na justificativa do veto, o governo federal afirmou que a norma “incorre em vício de inconstitucionalidade e contraria o interesse público por usurpar direitos originários previstos no caput do art. 231 da Constituição Federal”.
O presidente ainda menciona a decisão do STF tomada em setembro de 2023. “Decisão essa que rejeitou a possibilidade de adotar a data da promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988) como marco temporal para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas”.
Cada um dos vetos foi derrubado pelo Congresso Nacional, que manteve o projeto tal qual havia sido aprovado pelos parlamentares.
Supremo é novamente acionado
Diante da promulgação da Lei 14.701, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), bem como alguns partidos de esquerda, como o Partido Socialismo e Liberdade (Psol), e a federação que reúne o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Verde (PV) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), entraram com ações no STF pedindo que Supremo declarasse a inconstitucionalidade da lei aprovada.
Por outra parte, a Confederação Nacional dos Municípios (CMN) e os partidos Progressistas, Liberal e Republicanos, entraram com outra ação declaratória de constitucionalidade, ou seja, pedindo que o STF, de antemão, declare que a lei aprovada é constitucional. O que seria uma flagrante contradição diante do entendimento firmado pela própria Corte.
Por sua vez, o relator das ações, ministro Gilmar Mendes, em vez de suspender os efeitos da lei até que fossem julgadas as ações, manteve os efeitos da lei vigentes, e determinou, em agosto de 2024, a conformação de uma Câmara de Conciliação para negociar um acordo entre as partes.
Indígenas denunciam: “conciliação forçada”
Ainda em agosto de 2024, após a instauração da Câmara de Conciliação, a Apib decidiu se retirar do espaço, denunciando ainda que o STF levava adiante uma tentativa de “conciliação forçada”, que envolvia a negociação dos direitos dos povos indígenas.
Por sua vez, o ministro Gilmar Mendes decidiu que, mesmo sem a representação indígena, o processo conciliatório iria continuar. Ocorre que a Apib não é uma representação qualquer, mas uma organização autora de uma das ações que tramitam no STF, o que à época foi ressaltado pela entidade.
“Qualquer medida conciliatória, a partir do dia de hoje, feita sem a presença dos povos indígenas, é uma conciliação ilegítima””, declarou, à época, o então coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena.
A partir de então, os indígenas passaram a denunciar a ilegitimidade da mesa de conciliação e reivindicar que o STF julgue os embargos de declaração referentes ao julgamento do Tema 1031, reafirmando, portanto, o entendimento de inconstitucionalidade da regra do marco temporal. Isso serviria de base para que o dispositivo que estabelece essa norma na Lei 14.701 fosse automaticamente anulado.
Para agravar ainda mais a falta de representação indígena na mesa de conciliação, em fevereiro deste ano, a deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG), que vinha participando do processo desde o início dos trabalhos, foi substituída pela deputada Silvia Nobre (PL-AM), que defende a validade da Lei 14.701. A decisão partiu do então recém empossado presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Rep-PB).
“É uma forma de desrespeito que parlamentares que sequer participaram de nenhuma sessão, tentam agora dividir e enfraquecer nossa luta de maneira colonial, patriarcal e divisionista. O mesmo método usado na ditadura militar, quando se colocava indígenas para torturar outros indígenas, promovendo criminalização e dupla violência, se repete hoje, apenas com novas formas”, declarou Xakriabá ao se retirar da sessão. Já Nobre informou ao BdF que participou dos trabalhos desde o começo de forma virtual.
A minuta de Gilmar
Em 14 de fevereiro de 2025, neste ano, o ministro Gilmar Mendes decidiu inovar e apresentou nos autos do processo uma minuta de um anteprojeto de lei, que iria substituir a Lei 14.701. No texto, o ministro excluía a tese do marco temporal, e em contrapartida propunha uma série de dispositivos que agradavam aos ruralistas, como por exemplo, a possibilidade de mineração em terras indígenas e a atuação da Polícia Militar (PM) em processos de demarcação envolvendo povos originários.
“Está sendo reescrita a Constituição”, declarou Terena sobre a iniciativa do magistrado.
Em reação, a AGU apresentou uma contraproposta, que atualizava alguns procedimentos do rito demarcatório, estabelecia critérios atualizados para indenização em caso de desapropriação sem a perspectiva de pagamento por terra nua, por exemplo. A proposta da AGU também excluía o tema “mineração”, reafirmando a autodeterminação dos povos indígenas sobre as atividades econômicas realizadas no território, sob supervisão da Funai e outros órgãos públicos.
O que restou disso tudo?
“Muito pouco, algumas alterações semânticas, talvez”, respondeu um representante da União. Os advogados dos ruralistas pressionaram para incluir na proposta dispositivos que pudessem criar restrições ao processo demarcatório, como por exemplo, a obrigatoriedade de notificação dos estados e municípios sobre todo o processo, sob o risco de nulidade da demarcação.
Os partidos de direita representados no STF também fizeram de tudo para criar novos critérios para a indenização em caso de desapropriação, forçando, entre outras coisas, que a União aceitasse o pagamento por terra nua. “Por nós, só pagávamos pelas benfeitorias”, disse outra representante da União, nos bastidores.
Fato é que quase todos os dispositivos que diziam respeito ao processo demarcatório ou sobre a indenização, ficaram para depois. Alguns desses dispositivos foram excluídos da negociação porque não houve acordo. Sobre eles, o ministro Gilmar Mendes pode adotar uma posição de ofício, ou remeter à apreciação dos colegas no plenário da Corte.
Ainda sobre o plano de pagamento sobre indenizações, a AGU afirmou que a Casa Civil coordena uma força-tarefa, junto ao Ministério do Planejamento, o MPI e Funai, além da própria Advocacia Geral, e que apresentarão nos autos o Plano Transitório de Regularização das Terras Indígenas até o dia 26 de junho, data limite para o funcionamento da Câmara de Conciliação.
Na prática, o governo não quis levar o plano ao debate da comissão, numa tentativa de evitar que dispositivos sejam inseridos na proposta no sentido de criar obstáculos orçamentários para a demarcação de terras indígenas.
Diante da falta de consenso sobre questões que estiveram no centro dos debates da Câmara de Conciliação, o coordenador dos trabalhos, Diego Veras, informou apenas na última reunião do grupo que as propostas ali discutidas não iriam constituir um anteprojeto de lei em substituição à Lei 14.701, mas uma proposta de modificação de alguns dispositivos na norma vigente.
O que acontece agora?
“O ministro [Gilmar Mendes] não deliberou sobre o que vai fazer sobre o produto desta comissão, se ele vai submeter tão somente isso ao plenário, se ele vai retornar aqui para a votação, não decidiu sobre isso. Então não, nós não temos como dizer o que ele vai produzir”, afirmou o juiz auxiliar Diego Veras, ao final da última audiência da Câmara de Conciliação.
De fato, não há garantias sobre a negociação realizada nos últimos dez meses. Há possibilidade de decisões monocráticas, embora não sejam esperadas. O ministro Gilmar Mendes ainda precisaria remeter sua proposta ao plenário do Supremo e mesmo sendo aprovada, os ministros ainda precisam emitir uma sentença sobre as cinco ações que tramitam relacionadas à Lei 14.701.
Também não há qualquer garantia de que, enviada ao Congresso Nacional, a proposta consolidada a partir das discussões da Câmara de Conciliação não possa ser modificada pelo parlamento. Pelo contrário, é provável que o texto seja modificado pelos deputados e senadores.
“Essa comissão não conciliou, não haverá paz no campo”, disse um representante dos ruralistas, ao final da sessão desta terça. Os indígenas concordam com essa afirmação.
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