O Brasil registrou um crescimento de 151,7% em quatro anos no número de medidas protetivas de urgência para mulheres que sofrem violência doméstica. O total de instrumentos dessa natureza saltou de 338.398 casos em 2020 para 851.958 em 2024, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça no painel de Violência contra a mulher do DataJud.
Ainda de acordo com as informações, atualizadas periodicamente, a tendência de crescimento em 2025 mostra que o cenário não deve mudar e pode atingir novos recordes. Informações levantadas até 30 de abril de 2025, apontam o registro de 296.043 medidas protetivas apenas nos primeiros quatro meses do ano. Nesse ritmo, o resultado pode superar o ano passado.
A média mensal do período inicial de 2025 é superior a 74 mil casos de medidas protetivas. Se for mantida, o ano pode se encerrar com o registro de mais de 880 mil pedidos dessa natureza. À primeira vista, o resultado pode dar a impressão de crescimento de casos de violência contra a mulher, mas uma análise mais apurada sugere aumento no acesso a mecanismos de denúncia.
A advogada Raphaella Reis, que integra a organição DeFEMde – Rede Feminista de Juristas – afirma que os resultados indicam que a subnotificação de casos está diminuindo no Brasil. Segundo ela, mais do que uma possível escalada da violência, os números refletem os resultados do trabalho histórico de organizações populares e coletivos da sociedade civil pelos direitos das mulheres e de um esforço educativo de décadas.
“Toda essa construção histórica de educação e de conscientização, essa luta de coletivos, reivindicando mais direitos, conscientizando as pessoas sobre como buscar essa facilitação de acessos trouxe uma redução no sofrimento silencioso e dessas violências na calada da noite. Não vejo como um aumento dos casos de violência, mas sim que a subnotificação, a falta de confiança no acesso e o desconhecimento do que é ou não violência estão diminuindo.”
Segundo a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, as medidas protetivas são uma ferramenta de proteção de mulheres em situação de violência. Elas podem incluir, por exemplo, o afastamento do agressor do lar, a proibição de aproximação da vítima e a suspensão do porte de armas.
Embora o aumento do acesso a esse mecanismo deva ser celebrado, Raphaella Reis ressalta que a lei prevê assistência multidisciplinar. Ela aponta que, desde 2006, quando a legislação foi criada, o foco criminal tem se sobreposto a outras formas de proteção e prevenção da violência contra a mulher, o que prejudica o combate efetivo.
“Existem disposições na Lei da Mulher da Penha que tratam da responsabilidade do empregador, do âmbito familiar, que tratam, do serviço social, do âmbito do consumo. Esses mecanismos, infelizmente, não têm a visibilidade adequada e nem a aplicabilidade adequada. Então, o que acontece é que o sistema de justiça, especialmente o Poder Judiciário, está sobrecarregado, porque o foco criminal só trata o crime, não trata as medidas protetivas.”
A escalada ano a ano
A evolução dos dados explicita uma trajetória ascendente consistente nos pedidos, embora com algumas variações de ritmo. O período inicial da pandemia de COVID-19, em 2020, já sinalizava a gravidade da situação. O ano de 2021 marcou o maior salto percentual da série histórica, com um crescimento de 37% em relação ao ano anterior, totalizando 463.481 medidas protetivas.
Estudos do período mostram que, ao longo da emergência sanitária, o Brasil presenciou um aumento da violência doméstica. O cenário foi atribuído ao período de isolamento social, mas também a maior conscientização das vítimas e aprimoramento dos mecanismos de denúncia e registro pelos órgãos competentes.
Nos anos seguintes, o painel do CNJ também mostra manutenção da alta de medidas protetivas, mas em intensidade menor. Em 2022, o aumento foi de 25,4%, chegando a 581.268 medidas, seguido por 2023 com crescimento de 27,3%, totalizando 740.224 casos. O ano de 2024 teve relativa desaceleração no ritmo de crescimento, mas trouxe recorde de números absolutos, com 851.958 medidas protetivas.
Números estaduais
A análise regional dos dados mostra São Paulo em posição de liderança absoluta. Foram mais de 60 mil medidas protetivas registradas nos primeiros quatro meses deste ano, 20,3% de todos os casos do país. O número pode ter relação com o tamanho da população do estado e com o maior acesso à denúncia e ao judiciário.
Na sequência estão Paraná com 31.211 medidas (10,5% do total nacional) e Rio Grande do Sul com 26.034 casos (8,8%). Minas Gerais, o segundo estado mais populoso do país, aparece na quarta posição com 19.999 medidas (6,8% do total). Esta discrepância pode indicar subnotificação dos casos ou diferenças nos procedimentos de registro entre os estados.
No extremo oposto da tabela, o Maranhão apresenta o menor número de registros, com apenas 3 medidas protetivas nos primeiros quatro meses de 2025. O resultado traz fortes indícios de subnotificação, principalmente considerando a população do estado, de quase 7 milhões de habitantes.
Embora não tenham resultados tão pouco expressivos quanto o Maranhão, todos os estados que estão nas 10 últimas posições se localizam no Nordeste e no Norte do País. São eles, Paraíba (374 casos), Amapá (591), Amazonas (890), Roraima (1.164), Acre (1.549), Alagoas (1.930), Tocantins (2.687), Sergipe (4.586), Rio Grande do Norte (4.980) e Rondônia (5.082),
“Se fizermos a correlação entre os baixos números de protetivas dados em regiões do Nordeste e Norte e os altos índices de feminicídio nesses locais, vamos entender exatamente o que está acontecendo”, alerta Raphaella Reis. Segundo a especialista, os números mostram que a institucionalidade falha no combate à violência de gênero nessas regiões.
A advogada identifica um processo que está longe de ser coincidência. “Temos instituições falhando deliberadamente na proteção dessas mulheres para manter suas estruturas misóginas, machistas, sexistas e extremamente discriminatórias em voga. Não estou dizendo que São Paulo está uma maravilha porque aumentaram os números. Mas entendo que em diversas regiões do país, apesar de todas as nossas existências, persistências e existências, os sistemas estão trabalhando de forma ativa para nos sufocar, para nos matar.”
Para ela, a solução desse cenário envolve o governo federal, por meio do Fórum Nacional de Diálogos sobre a Lei Maria da Penha do Ministério das Mulheres, que está incumbido de monitorar os sistemas de justiça sobre a aplicação da norma. “É necessário cobrarmos maiores condições do governo federal para políticas públicas que permitam melhor atuação de coletivos. É ideal cobrar mudanças significativas nos mecanismos de atuação dos governos dos estados e municípios, porque senão, não conseguiremos efetivar a Lei Maria da Penha.”
Tempo de Resposta e Taxa de Concessão
Um aspecto positivo revelado pelos dados do CNJ diz respeito à eficiência do sistema judiciário brasileiro no processamento das medidas protetivas. O tempo médio entre o início do processo e a concessão da primeira medida protetiva é de quatro dias. A distribuição dos casos por grau de jurisdição também revela atenção à urgência do instrumento, com 99,6% dos casos concentrados na primeira instância.
A taxa de concessão das medidas protetivas também aponta agilidade e atenção às denúncias que chegam até o judiciário. Dos 296.043 casos registrados em 2025, 199.858 medidas foram concedidas (91% do total), enquanto apenas 19.789 foram denegadas (9% do total).
Para Raphaella Reis, a diminuição das medidas protetivas e, consequentemente, da necessidade de aperfeiçoamento e resposta do judiciário depende diretamente de um movimento consciente de atenção às estruturas multidisciplinares de atendimento da Lei Maria da Penha.
“É necessário que todos sejamos responsáveis pelo enfrentamento à violência de gênero. Quando isso acontecer, nós poderemos falar em redução das medidas protetivas. Quando tivermos realmente todo um sistema social – o trabalho, a previdência, a saúde, o consumo, a família, a cultura – quando todos esses sistemas estiverem empenhados na proteção e no enfrentamento às violências de gênero, aí sim poderemos enxergar o aumento de medidas protetivas como algo simplesmente negativo.”
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